quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Greti


É fascinante toda a coloridice portfólia de Cuno Amiet, pintor suíço que viveu quase cem anos entre os séculos XIX e XX, deslizando sobre diversas rotulações de estilo; mas a obra de sua lavra que me fascinou mais de improviso calhou de ser uma praticamente descolorida, e mesmo assim – ou por isso, exatamente – vestida duma doçura mágica que se cria do improvável. Espiem que lindeza essa sua Greti, de 1907, para casar rimadinho: ao mesmo tempo quanta minúcia e quanta flutuância, como se retratasse uma heroína de conto infantil que devesse estar apta para a saciedade concreta e para a simultânea construção abstrata. Greti, não sendo obviamente fada, não é também apenas menina; é a infância de seis, sete anos em pé no seu próprio limiar de fantasia e razão, tão cansadinha talvez de ser quanto abundante de motivos para sê-lo. Greti é um porém, um doravante, um enquanto isso, tudo maravilhosamente mesclado em seu olhar entre parênteses.

Além dos olhos-enigma, que não sabemos bem se sorriem, consideram, duvidam ou aguardam, o mais extraordinário é sem dúvida o uso pontilhadinho do branco: nos laços e no vestido ou camisola da meninazita, uma chuva imensamente encantadora de luz, e luz intermitente e vaga-lumada como convém aos quadros mágicos. Há mais luz chuviscada no ambiente, e no entanto muito menos luz que cinza – por não ser, de fato, o entorno da infância responsável pela brilhação maior, e sim a meninice mesma, em si e consigo. Existe o faiscamento que acompanha a pequenice de Greti, sim, e a dos outros pequenos por tabela, mas é de transbordar e não de absorver que normalmente se trata; é de expandir-se, é de espargir, é de espalhar. É a sombra ou reflexo da criança que contém clarões contaminantes, sendo próprio da criança, entretanto, também conter a esponja que absorve mil vezes todo cinza que a abraça.

Viram os pés de Greti? ainda estão indefesos, nus; são insuficientemente pesados por enquanto, passam tão leves que só um deles projeta uma penumbra incerta, tracejada como se configurasse rastro de passarinho. A luz emanada é vaga-lúmica na parede, porém a sombra emitida não deixa de ser vaga-lúmica no chão: nem sabem por onde vão ou foram esses pezinhos, para que já conseguissem pousar no ambiente com tanta densidade. Toda a densidade de Greti está na expressão indefinível, fronteiriça de hesitação – tudo mais aí é leveza –, e, olhe, QUE coragem há em captar essa fronteira, esse desnível que não imaginamos ou confessamos ver em olhos de criança; QUE poderoso é ver a identidade se formar, instigante, mesmo nos tempos mais translúcidos. QUE espetáculo ver tão incrivelmente conjugado, na arte, nosso paradoxo real de imponderabilidade e transparência.

Viventes, vemos curto em nós; a arte nos vê em essência.

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