quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Preconceitos


Sim, também os tenho, ora se não; tenho preconceitos de monte. Mas não com pessoas, Deus me free duma desgraça dessas, e sim com livros – vá lá, pessoas acabam indo no bolo, se se levar em consideração que livros desagradavelmente não se escrevem sozinhos, e que malgrado minhas boas intenções eu tendo a tomar antipatia por autores que cometem nascimento (ou boa parte do vivimento) depois do século XIX. Acho coisa bem inconveniente mesmo, isso de o escritor não estar entre os 1700 e muitos e os 1800 e tantos. Que que a criatura vem fazer no século XX, gente?? no século XX nasci eu, não quero ficar andando literariamente com esse povo de lá. Confesso ir mais longe: se, em romances do finalziquinho dos 1800, começo a suspeitar que os "carros" do texto são carros mesmo e não carruagens, ou se começo a ver a história invadida por luz elétrica e telefone, fecho a cara e o livro, de entojo. Não estou exagerando; já interrompi leituras nas primeiras páginas – e doei as obras sem reabri-las – porque dei de cara com um mundo que ia ficando inadvertidamente similar ao meu, que não combinava com o próprio cheiro amarelo, que não casava com a própria capa dura. Falei, não falei? sou preconceituosa, lidem com isso; é uma cisma arraigada de gosto que não parece ter intenção de ceder num aproximado futuro.

Há exceções, claro, como os livros da Martha, que são sobretudo os que me salvam de meu oitocentosverso de tus e vós e donzelas e gentis-homens e toucadores e alcovas; há também o planeta poesia, que me soa tremendamente maravilhoso em meu próprio século e no anterior (agora frequento pouquíssimo os excessos dos versos românticos); porém o grosso da leitura se faz, sim, em tom de sépia, entre personagens que não se recadinham a não ser por cartas e bilhetes, leem poemas épicos em família e jogam twist ou gamão para escoar os serões. Não peço autor desconhecido na Estante Virtual sem escarafunchar a biografia do ser humaninho: preferência clara pelos nascidos AND morrildos no século retrasado (ou antes), a fim de não haver chance de o enredo transbordar para outro. No caso de a criatura em si ter transbordado de século, vou bem espiar o ano de publicação do romance – começar com 19 é fator de corte. "Mas você é louca, é uma celerada [convenhamos, não é delicioso retroceder uns cem ou duzentos aninhos só para dizer celerada?], está perdendo leituras de alguns dos maiores autores etc. etc." É verdade, vocês têm toda a razão; em compensação e em minha defesa, entretanto, digo que não ando nem um pouco mal acompanhada de qualquer forma: caminho diariamente com George Sand, Balzac, Machado, Jane Austen, as Brontë e outros tantos que não deixam ninguém mais burro. Tenho vácuos, sempre terei vácuos, mas tenho igualmente alguns preenchimentos.

Há mais preconceitos: apesar de ter estudado inglês desde pequena e provavelmente compreendê-lo quanto baste para a leitura, não compro livro em inglês, não paro para ler em inglês, não sinto prazer de ler em inglês. Nada contra a língua em si, não desgosto, mas com relação à leitura ne-ces-si-to da cadência latina, dos fonemas latinos; a fonética saxônica não dá barato, não bate. Falando nisso, tenho uma implicância robusta com literatura norte-americana, MESMO a do século XIX – não só não bate como não desce. Por quê? lá sei; culpa talvez de os meios e modos serem muito distintos dos europeus, de eu ser trop française nas queridices literárias, de os EUA parecerem estar sempre muito em clima de modernidade (e, portanto, muito aparentemente voltados para a tecnologia adiante), ao mesmo tempo muito imbuídos daquelas horrendas realidades da escravidão... "Mas não faz sentido, a Europa..." – CLARO, amigos, não precisam falar das canalhices da Europa, sei-as todas. Ôôô, como sei. Só que com a parte histórico-literária americana não consigo entabular uma remota simpatia ou interesse, odeio tudo; odeio aquele Sul horroroso e apartheidista, odeio as malditas fazendas de algodão, odeio aquela arquitetura à la E o vento levou... ou Django livre (quanto me arrepia a estrutura branca, amplo sentido, daquelas Casas Grandes!), odeio a estética do faroeste, odeio essa bagaçada toda com engulhos. "Mas nós também..." Sim, nós também temos nossas chagas, e abundantíssimas; fiquemos com as nossas, compreendamos as nossas. Que os brothers de lá segurem seus próprios beós e não me aborreçam – garanto que não se dão nem um tico ao trabalho de mergulharem em nossa história.

(Entantomente, sou mais aberta a amar do que imaginam, e dentro mesmo da teimosia me vejo capacitada para achar ternuras. Não sou um caso perdido. Se o cheiro das páginas acender muito a fundo algum fogo – tem jogo.)

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