domingo, 12 de setembro de 2021

Pupila do senhor doutor


Dos autores portugueses, provavelmente nenhum me foi tão querido (ou escreveu coisas tão-me queridas) quanto Júlio Dinis, cujos redondinhos 150 anos de morte lembramos hoje. Enquanto o exagerado, descabelado, debochado, prolífico Camilo encheu Romantismo e Realismo lusos de amores de perdição e de corações, cabeças e estômagos – o que aliás não renego, ao contrário: duvido que pessoa viva tenha chafurdado mais do que eu em camilianices –, Julinho sempre foi dos enredos fofos; nadica de gente desmaienta, apoplética, emparedada, enconventada, casada ou separada à força, enlouquecida por descobrir que era filha do irmão ou irmã do marido ou bastarda da mãe com o tio da quitanda. Camilo era um tornado extravagante, Júlio era o ventinho reflexivo, voltado para as crônicas remansosas de aldeia e os amores doídos mas possíveis – e felizes. As pupilas do senhor reitor foram minha primeira incursão adolescente na literatura portuguesa, um marco que me ensinou outro mundo, outra cadência, outra sintaxe; ainda lembro e vou lembrar forevermente suas inéditas trigueirices com reverência e doçura.

De Júlio (Joaquim Guilherme de batismo) só conheço um defeito triste, que foi o ter vivido pouco – faleceu no meio-dia dos 32 anos incompletos – e, consequentemente, ter escrito pouquíssimo para meu tamanho de gula: de romances foram apenas as Pupilas, Uma família inglesa, A Morgadinha dos Canaviais e Os fidalgos da Casa Mourisca, e fora isso alguma poesia, algum teatro, alguns contos. Certo, não deixou de ser bastante para sua juventude, ainda mais que também cursou Medicina e com destaque; mas quanto mais não produziria genialmente, se não fosse a tuberculose (claro) arrastá-lo tão cedito – a mesma tuberculose que lhe varreu a mãe, a avó e os OITO irmãos? Quantos romances mais, para além desses quatro dos quais três (somente por Uma família inglesa não sinto especiais afetos) estão sem dúvida entre minhas ficções mais importantes ever? Entre as mais importantes, sim: afirmo e reafirmo. Quem acha que – porque leves e românticas – as júlio-dinices são tolinhas só mostra, berrantemente, seu desconhecimento a respeito do autor, que tecia psicologias quase existentes de se pegar; personagem nenhum lhe saía da mão sem verdade e consistência, sem sólidos quês e comos, traços de personalidade bem definidos e, não raramente, algumas páginas de explanação emocional. Júlio era exímio criador de gente, e tudo indica que as décadas o fariam ainda melhor, se uma ou três lhe viessem de acréscimo.

Inocente pode-se dizer que tenha sido a prosa do querido doutor; ingênua, no way. Júlio se mostrou recorrentemente atento às questões sociais e políticas, à necessidade dum aproveitamento mais inteligente da terra, à inviabilidade duma nobreza imóvel e inútil no correr dos tempos, ao perigo extremo do fanatismo religioso entre criaturas que, desassistidas e ignorantes, ficam vunerabilíssimas a demonizar tudo que não compreendem (a esse respeito, há cenas nA Morgadinha dos Canaviais que gelam a espinha, sobretudo ao se considerar como esse retrato do horror soa familiar e verossímil em nossas esquinas brasileiras do século XXI). Mesmo a construção dos pares românticos dinisinos, fofurildos que sejam, não se parece dirreimanera com lances rocambólicos de folhetins em que um cruzar de olhares faz a desgraça de um casal para o resto da vida. Não; o amor júlio-dinisino tem raiz na infância ou na reflexão, às vezes em ambas; é racional apesar de intenso, é viável, delicado, reconhecível, constantemente tonto demais para acertar de primeira, imperfeito e só mais tarde sincero, hesitante e só então efetivo. Importantemente, as mulheres (donzelas embora) parecem estar sempre com ANOS a mais de evolução e arcabouço nas costas para lidar com as tretas sentimentais, o que só ratifica o senso de observação exemplar do nosso Julinho – que, não tenho a menor dúvida, viria a ser um mestre do Realismo como foi do Romantismo, se a realidade não se tivesse imposto extraliterariamente da pior forma imaginável.

A lusofonia, ou o Brasil ao menos, creio que não lê bastante o doutorzinho escritor; é pena. Nunca precisamos tanto de estudos sobre o provincianismo para (gentil ou assombrosamente) nos elucidar.

Nenhum comentário: