terça-feira, 21 de setembro de 2021

O tempo e o vento


Hoje venta, venta, venta, venta que é um absurdo; há de ser o último dia antes da primavera, parece, e a natureza como que pontualmente vem expulsando o inverno com sua vassoura peculiar, feito os garçons e gerentes de estabelecimento que tocam os bêbados para fora com o advento da faxina. Senhor, que vento eterno! Horas e horas de galhos tombando, portas assustando crianças e distraídos, ruas virando um grande e único arbusto, vasos desabando em varandas, frutas amassando carros (sim, porque no inverno brasileiro as árvores poedeiras não se fazem rogadas), toldos se sonhando paraquedas, mensageiros dos ventos histéricos, ensandecidos em sua redundância. É isso uma mudança de estação carioca – caos e ventania, caos e ventania; no Rio de Janeiro até a primavera adentra o recinto falando alto.

Evidentemente, a maior preocupação são sempre as pessoas, e o prefeito inclusive já soltou nota pedindo aos circulantes facultativos que não circulem, sob risco de levarem algum oiti ou amendoeira ou poste ou marquise na cabeça (não, ele não usou essas palavras, mas qualquer criatura razoável pode deduzir o teor). Uma vez guardadas as pessoas, minha imensa dor de coração passam a ser as árvores caídas; não é que bem exatinhamente hoje, dia delas, calha de se arranjar uma tal chacina eólica! Me permitam lastimar que o Dia da Árvore tenha sido tão mal colocado – ou plantado –, assim no vão entre uma estação e outra, o que TODOS sabem ser sinônimo de clima insalubre para as homenageadas: venta como se Moisés estivesse abrindo o Mar Vermelho, cedo ou tarde hão de chover as tormentas acumuladas desde o Big Bang, e as pobrezinhas (impedidas por e pela natureza de se embolinharem em posição fetal, para defesa de todas as suas partes não subterrâneas) estão sujeitas a passar o pseudoaniversário sempre numa ressaca de pânico, feito mulheres cuja data especial acerta fatalmente uma TPM.

Toda vez que desaba um pé de qualquer coisa, ou é cortado, ou é podado com violência, sinto uma tristeza de morrer gente, uns revolveres de luto; esse que despencou em Botafogo, por exemplo, levantando inteiramente sua porção de calçada e esmigalhando (felizmente sem vítimas) um táxi e um carro civil: oh dor de ver, horizontalizado, o tronco velho o bastante para estar poeticamente verdinho dos musgos e cipós que vão tão bem com a madeira. Dói-me a queda da sombra – como é urgente a sombra, para cariocas! –, do guarda-chuva natural, da feitura artística da casca, das possíveis flores, às vezes não só possíveis como absolutistas, demolidoras de toda a folhagem para reinar exclusivonas. Dói-me a queda do hábito de quem contava observar sempre a mesma árvore, conhecer-lhe o ciclo, esperar-lhe a florada, ouvir-lhe as cigarras que a fazem de hotel-veraneio; dói-me tudo, a morte de tudo que a morte duma dessas rainhas vegetais implica, o vácuo irreparável que deixam naquele quadrado de rua, afeito a determinado ecossistema. Sim, é sempre viável o replantio – mas até maturar vai uma geração inteira, umas bodas de prata reaguardando o velho viço. Nisso é que me pegam: as árvores somos nozes em termos de demoras, idiossincrasias, microcosmos, perfumes únicos, belezas intransferíveis; planta-se outra e talvez mais bonita até, entanto a anterior nos sabia e nos era sabida, pronto, lascou-se. Nem a clonagem nos devolveria todo o tempo. Nada nos devolveria tudo a tempo.

A tempo de quê? – de não principiar a morrer, dalguma espécie de secura, um pedacinho específico do nosso minibioma particular.

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