terça-feira, 14 de setembro de 2021

Espaço de ser gente

Não resisto a, com todo o respeito, usar Emicida de novo, já que a cada Papo de segunda vem outro frasco de sabedoria; desta vez sublinho e ressublinho um seu comentário a respeito da loucura de perfeição das redes sociais: é preciso arrumar um jeito de, nelas, proteger o espaço de ser gente. Vocês sabem, apenas gente – não criaturas que montaram uma horta suspensa de temperos frescos no feriadão, não seres que viram e resenharam num só ano 734 séries da Netflix e adjacências, não espécimes que acordam todos os dias com uma boa vontade fulgurante voltada para o trabalho, não cabeçudos insaciáveis que estão terminando o quinto doutorado enquanto pleiteiam uma bolsa em Harvard para o sexto; gente, só. Aquele grupo de viventes que não andam arrumados para festa, não fazem ioga, não meditam, garram a primeira coisa do primeiro cabide como look do dia e vamo nós, que as crianças estão lá se esbofeteando na sala e daqui a pouco chega o tiozinho da farmácia para entregar o remédio do caçula. That people.

Não se trata de enfear a vida, trata-se de desglamourizá-la – ou antes humanizá-la, descapitalizá-la, torná-la possível, viável, menos competição, menos produto. Por que maniçobas voadoras temos de viver tão em voz alta e altíssimos tons, batendo um cartãozinho de ponto imagético dia após dia (olha o que vesti, o que comi, o que cozinhei, para onde viajei, o show a que assisti), se verdadeiramente ninguém se alegra ou se importa tão de coração com deslumbres da existência alheia e, ao contrário, tende a desenvolver fortes negatividades de autodesgosto e de comparação? De que nos serve EFETIVAMENTE publicar nossas cenas montadas-para-felizes, se tanto nós – que publicamos – sabemos o que ali há de véu e filtro quanto os demais – para quem publicamos – se concentram não no que estamos fazendo, mas no que eles estão deixando de fazer? A quem serve esse exagerado embonitamento da rotina, se quem posta ainda tem de lidar com seus demônios não postados (e a cobrança muda ou ruidosa dos seguidores), e quem não posta tem de se haver com frequentes depressões e baixas de autoestima que não são úteis a absolutamente ninguém?

Claro que "exibições" eventuais de alegrias fora da curva fazem parte do jogo, como aliás fazem na vida mesma (a vida original, sem tela); elas acontecem, a gente quer gritar pra todo mundo ouvir tipo música do Roupa Nova. Normal. Mas todo dia, toda semana um esparrame de felicidade, uma cena de conto de fadas, um evento estrambólico, um passo edificante? Meça suas perfeições, parça; pessoas reais não suportam tamanha carochice ou bovarice, não há como isso ser terapêutico para nenhum dos lados envolvidos. O que se engorda mais e mais é o bolotão de neve da ansiedade, que soterra uns sob a demanda do sempre e outros sob a desolação do nunca, do ainda não, do nada dá certo comigo mesmo. Uma esquizofrenia generalizada, enfim; uma plastificação das realidade palpáveis que perdem a chance de mostrar-se lindas a seu modo e são, coletivo-inconscientemente, carimbadas de insatisfatórias, embora sejam o único chão pisável e, portanto, o único disponível para semeadura de satisfação.

É preciso proteger, resgatar o sagrado direito à gentice. Ser tocável; ser aquele que não quer (mesmo que tenha de) acordar às 5h para trabalhar, garantir produtividade e bater metas; ser o que não viu a série nem vai ver, não está a fim; ser quem não consegue tirar foto de filho em viagem porque os monstrinhos ainda não têm estômago para viajar, choram o tempo todo, vomitam, tornam todas as existências à sua volta um inferno; ser quem faz um miojo para si quando está sozinho e olhe lá, ou desce para almoçar no boteco – TÁ BOM que vou cozinhar uma receita da Rita Lobo e abrir um vinho só pra mim. Gente que não sonha voltar para a faculdade porque FRANCAMENTE, trabalho com regras da ABNT a esta altura?? Gente que vive com azia, não sabe descascar fruta, não está apta a opinar sobre tudo e é capaz de dizer "não faço ideia, preciso ler algo a esse respeito", se recusa a precisar emagrecer se a saúde está boa, compra lençol vagabundo, acha o máximo escolher roupa em supermercado. Sabe gente? Gente. "Homem humano", diria Guimarães Rosa.

A única espécie com que podemos seguir colegamente nas quebradas da travessia.

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