domingo, 19 de setembro de 2021

Retrato de uma menina

Mil pinturas me impressionam em cheio, não raramente retratos; um destes é o Portrait of a little girl criado por Diego Velázquez, o incrível barroco espanhol que tendia a acercar-se com respeito de seus modelos e averiguá-los não sem uma certa ternura. É tocante e interessantíssimo, na representação da garotinha anônima, que ele a tenha feito despojada de tudo – de enfeites, de minúcias do ambiente, de detalhes da roupa –, e consequentemente liberta do tempo: nada na imagem da pequena Porcia Bazán (se o pintor não quis nomeá-la, batizo-a eu) a prende a esta ou àquela época, sendo mesmo possível que ela fosse uma criatura de muitos séculos antes do seu XVII ou que vivesse perfeitamente agora. Nada, também, denuncia com precisão sua classe social; deduzo que não seja nobre, pela falta dos artefatos & aparatos típicos das fidalguinhas, mas como afirmá-lo? Não o afirmo, e no entanto considero Porcia filhita dum assistente/discípulo de Velázquez – crescida, portanto, entre tintas e movimentações de ateliê, apesar de sua indiferença pelo ofício ser quase completa. Porcia ama histórias, basicamente, histórias grandes e soberanas: guerras, conquistas, epopeias, cavalarias, graais; por trás do olhar timidamente intenso que o artista preferiu deixar-lhe como único ornato, pulsa uma Joana d'Arc todinha, fabricada de encomenda para se atirar no mundo revivendo os enredos lidos.

Sim, Porcia foi ensinada a ler – por seu padrinho Velázquez, inclusive, que se viu desde os primeiros convívios captado pela inteligência entranhada e teimosa da menina. São jovens nove anos duma vontade selvagem, muito quieta por excesso de observação, muito explosiva em momentos poucos; ainda que raramente fale sem ser obrigada, a mascote de ateliê mantém uma atenção eterna e quase violenta, uma dedicação obsessiva a compreender tudo quanto vê e escuta, e às vezes espiar o que acredita que lhe escondem. Diego não se aborrece, acha graça, até conversa frequentemente com a afilhada como que de adulto para adulto, narrando-lhe as viagens feitas e descrevendo lugares visitados. Verdade que os pais da menina, embora se sintam honrados com a paciência afetuosa do pintor, não exatamente se encantam com o fato de as narrativas tornarem a pequena ainda mais abstrata e arredia: a cabeça sanguínea de Porcia rumina, fermenta, rumina, fermenta por semanas as informações ali desabadas, e é com repugnância gritante que se arrasta em executar qualquer outra tarefa.

Além de Don Diego, apenas Nuño, menino da mesma idade da Bazánzita que vive recadeando no ateliê, faz alguma companhia a Porcia; é preguiçoso demais para leituras, o moleque, mas se presta a ouvir os planos combatentes da amiga e as histórias que os fizeram tomar forma – com o pobre Nuño ela fala sim, fala mesmo muito, por intuir no companheiro uma audiência pouco sofisticada, passiva, sempre admirada das cabriolas todas que saem daqueles neurônios galopantes. Só a presença do jovem docilizou a garota suficientemente para se deixar pintar por Velázquez de coração aberto; não que ela fosse recusar ser modelo do padrinho, mas sua timidez nervosa e de orgulho um pouco ranzinza resistia a se aquietar com a ideia até que Nuño lhe dissesse que "era preciso Don Diego fazer seu retrato, para que todos soubessem como ela era antes de suas conquistas". Porcia posou séria e questionadora como lhe era praxe; por dentro, um turbilhão de quixotismos fermentando, fermentando, desafiando com os olhos o mundo a não pertencer-lhe, se tivesse peito.

Essa a menina que vejo; cada um veja em si o retrato feito.

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