segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Gaste-se


Ontem foi aquele Evangelho do "quem quiser salvar sua vida vai perdê-la, quem a perder por causa de mim vai salvá-la" etc. Não sei se reproduzo certinhamente as palavras; o teor é esse. Acho sempre uma fala impressionante de Jesus (como todas), porque eternamente atualíssima – sobretudo num Brasil acostumado às adesões venais, à esbórnia da política voltada para o eu e alijada do nós de maneira contundente, obcecada; é mui pouquíssimo de nossa tradição como país contar com a integridade absoluta, lidar com ela e reproduzi-la, dando-nos todinho-inteiros à estranheza de ser exatamente o que devemos ser. Em geral nem nós brasileiros esperamos uns dos outros que não haja algumas maleabilidades, algumas pequenas espertezas de fuga, algo de arredio e malandro em cada ato; às vezes por vício, às vezes por defesa nos fazemos inóspitos para a entrega profunda, ainda que grosso modo sejamos intrínseca e impulsivamente bons.

Tendemos para bons, mas frequentemente nos falta ser inteiros. Radicais.

OK, temos tido exemplos abundantes de radicalismo na outra ponta – fascistas insanos que não se poupam nadica em termos de ódio, distribuem ódio de baciada e para todos os "diferentes" em gênero, cor, classe, religião. Só que ser radical no ódio, na fragmentação é facílimo, qualquer idiota (aliás, principalmente quem é idiota) consegue mole mole mole, já que não implica esforço algum se autoconvencer de que tudo se trata de uma guerra e a salvação da vida exige pisar na cabeça alheia para se manter à tona. Doutrina confortável que não pede de seus seguidores nem talento, nem conhecimento, nem força, nem inteligência, nem valentia: basta uma meia dúzia de palavras de ordem e uma coragem nascida atrás das armas para tudo ficar arranjado. Aí qualquer um; quero ver é ser radical NO AMOR, bonitão. Não a praga que chamam (heresia!) de amor e não passa de uma das manifestações desse mesmo lado covarde, possessivo, ciumento, infantil – espécie de versão do amor no Planeta Bizarro –, e sim o amor original de fábrica com selo do Inmetro, que não desbota, não encolhe, não solta as tiras; o amor que adota as dores alheias como suas, em vez de gerar dores de outros para evitar ou resolver as próprias. O amor que se lembra de si secundariamente, por estar apaixonado demais pela ideia de gestar felicidades coletivas.

Embora esse também esteja aí para qualquer um, raríssimos são os uns que estão aí para ele, e não admira: não cuida de salvar sua vida se for o preço para salvar outras, não liga se vai se tornar socialmente repetitivo e desagradável ao denunciar absurdos, não se importa de ser chamado de comunista pela família inteira (por sinal gosta, ele é comunista mesmo), não se cala quando ameaçado porque há pequeninos que dependem de seu grito, não mente a não ser para fascistas e torturadores, não se reserva nunca o maior naco nas divisões, não evita ser eventualmente inconveniente, incômodo e insuportável aos que não têm pressa de solucionar o que é urgente. Amores desse naipe são indigestos em reuniões políticas; não se acanham de encher o saco com pedidos de recursos – fora o que derramam discretamente DO, e não NO próprio bolso; empregam seus talentos com furor pela paixão do bem, gastam-se e esfalfam-se sem dó (estão aí o padre Júlio e os Médicos sem Fronteiras que não me deixam mentir). Gastam-se, eis tudo: o amor real se gasta de todo, queima-se por completo, não se guarda para suas conveniências. Não se economiza.

É uma trip louca, concordo, mas cada dia mais necessária; tal qual o dinheiro adorado por tantos, amor deve espalhar-se, não adianta de nada se apenas acumulado na gaveta ou exibido na prateleira. A diferença para os cifrões é que amor é aplicação de longuíssimo, eterníssimo prazo – e tem a peculiaridade de, quanto maiores as retiradas, mais prolífica e petrolificamente jorrar.

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