domingo, 5 de setembro de 2021

Muitos e nadas


O médico, geógrafo, nutrólogo, escritor, professor, político, cientista social Josué de Castro, que hoje completaria 113 aninhos de inteligência e labuta contra a fome (QUANTO trabalho terias por agora, Josué!), bem falou numa sua apresentação em Estocolmo, 1972, que "o subdesenvolvimento não é, como muitos pensam equivocadamente, insuficiência ou ausência de desenvolvimento. O subdesenvolvimento é um produto ou um subproduto do desenvolvimento, uma derivação inevitável da exploração econômica colonial ou neocolonial, que continua se exercendo sobre diversas regiões do planeta". E COMO continua. Estar plenamente ciente da verdade limpa mostrada pelo autor me encoleriza ainda mais com relação aos que, filhos e vítimas dum sistema que espreme e oprime e dessedenta um lado em prol do outro, põem-se de joelhos em adoração a este outro – o lado exterminador, o lado assassino, alimentado pelos pescoços que suga. Os nossos, no caso.

Sim, eu também gosto de visitar países ditos desenvolvidos e beber-lhes o melhor, divertir-me em seu melhor; não tendo cérebro nem coração binários, sou capaz de amar, por exemplo, a França, devido a sei lá que gatilho linguístico-cultural que talvez não consiga compreender suficientemente nunca; e no entanto nada disso significa, de modo algum, que eu não saiba com que questões históricas estamos lidando, ao lidar com qualquer dessas terras que têm de mais porque outras têm de menos. Guardadas todas as necessárias complexidades para mais tarde, é isto, em suma – é isto o mundo: uns têm de menos para que outros tenham de mais. Mas de fatalidade não existe nada, nesse para que; existe sim uma diligente arquitetura de séculos, uma indústria de azeitada e antiquíssima expropriação, de constante esmagamento humano, de desnutrição e subemprego, deseducação e roubo. Admiremos os produtos culturais das nações ora riquinhas, que seja, porém permaneçamos como Ulisses amarradinhos ao mastro, com nossa lucidez insereiável e imune a crises estocolmas.

Para que o Brother lá do Norte se achasse bastantemente grande, nenhum dos demais países americanos teve "autorização" de crescer e emancipar-se tanto que não viesse, em represália a sua audácia de soberania, um golpe de Estado seguido de ditadura (mamãe Inglaterra ensinou bem, aliás, patrocinando a guerra de que o outrora rico Paraguai jamais pôde recuperar-se de todo). Para que o mesmo Brotherzinho possa investir um trilhãozão na cura de sua economia, a nós cabe o apertamento de cintos, o desserviço à população, a austeridade. Para que os grandes poluidores não interrompam a produção nem se chateiem com acordos ambientais, resta a nós outras, nações desempoderadas, pagar a maior conta do clima. Para que a Bolsa não se irrite, urge que o povo siga faminto e desesperado por qualquer migalha trabalhística – que mané direitos! quer espantar os investidores internacionais, criatura?? Para que marcas universais podres de chiquérrimas permaneçam com lucros podres de chiquérrimos sobre seus preços terrivelmente obscenos, é preciso que operários e mais operários esgotem a saúde, a vista, o tempo em troca de remunerações inversamente pornográficas. Para que o mundo seja o que seja – fabricante de bilionários doidos que praticamente espirram o dinheiro a ser empregado em passeios espaciais –, a maior parte dos mundos não é: não come, não dorme, não mora, não vê os filhos, não alimenta os filhos, não planta, não possui, não se cura. Não dura. E que não dure embora; nascem outros pequenos e paupérrimos mundinhos, feito peças descartáveis de reposição.

Nada de joelhos na terra para beijar sapatos do outro hemisfério; nada, amados, de ídolos falsos. Sem nossas mãos de cá, estão todos descalços.

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