sábado, 25 de setembro de 2021

Quereres e poderes


"A única vantagem do poder: poder fazer o bem mais do que qualquer outro", segundo Baltasar Gracián. Toca aqui, Balt, concordo SUPER. Concordo também que, por sermos nós todos humanos em excesso, há inúmeras bestagens de criação 100% humana que nos roçam lá umas fibras de vaidade, como andar carregando títulos para cima e para baixo – doutora, meritíssimo, majestade, mestre, excelência –, meter credencial para entrar sem fila, ter plaquinha com o nome na porta da sala, ser perseguido para selfies e entrevistas, existir como autoridade no assunto. Há também soberbas materializadas em fetiches tão convencionados/convencionais quanto os tais títulos: dirigir o carro vermelho do cavalinho, usar a bolsa dos dois Cs entrelaçados, vestir as joias que serviam de paisagem ao café da Bonequinha de Luxo. Já outras criaturas se orgasmam mesmo de ter na mão a vida alheia, decidir milhões de futuros (ou de suas respectivas ausências) numa canetada; curtem apontar para um lado e emplacar uma guerra, aplicar ou aplacar uma sentença, e então virar o indicador para outro e liberar uma lei, uma estrada, um orçamento, um míssil. Há ainda aqueles de narcisismo tão, mas TÃO mendicante que o que desejam é basicamente incenso – o que os apaixona é a adoração pública, a devoção dos seguimores, a tietagem burra e histérica que lambe, adula, rasteja. Aí cada um com seu cada qual, e tio Freud quebrando a cabeça com todos. De minha parte, espero facilitar para o tio ao acatar Gracián por inteiro: o que desejo supertem nome – justiça que chama.

"Ah, mas tendo poder de verdade você ia querer comprar coisas caras, ia adorar ser reconhecida, distribuir autógrafos, discursar na ONU." Olha: não. Não é que eu seja nenhuma santa (quem dera), sou é intratável demais para me conformar em ser observada de alguma forma, fotografada, perseguida; tenho HORROR a que me amolem. Simplesmente HORROR. Se isso em pequeníssima escala – que alguém me telefone ou me apresse para sair, por exemplo –, imagina numa proporção balofa? Quanto a comprar coisas caras, céus, sou mulher de sebos e feiras de rua e brechós; acho aqueles shoppings e ruas feitos só de marcas chiques basicamente EN-FA-DO-NHOS. Com relação a discursar na ONU, talvez me tentasse, ainda que possivelmente eu vomitasse antes de puro nervoso – mas vá lá: esfregar alguns negócios bem desaforados nas fuças do planeta ia ser divertido, não digo que não. Divertido, porém, o poder de modo geral não deve ser, por vir acompanhado de grande privação do sossego e de grandes responsabilidades, já diria um outro tio (notadamente o Ben); eu só toparia encarar se, por mágica, pudesse manter-se completo o anonimato. Então sim, megassim; adoraria ir desatando umas tretas bem na moita, na maciota, sem canal ou empresa ou político nenhum ficar me enchendo os pacová e a caixa de e-mails (já bastam Renner, Extra e afins me floodarem de últimas-horas-de-não-sei-que-promoção todo fucking dia, dai-me paciência, se me der força eu esgano).

Nessas silenciosas condições eu queria ser poderosa, yeah, poderosíssima. Escandalosamente poderosa. Coisa muito pra riba de dono da Amazon. Queria plantar casas fabulosas para os que ainda não (ou não mais) as têm, solucionar as que estão precárias, preencher as que são insuficientes; queria ajeitar uma infância linda – sem trabalho, com um tantão de brinquedo e livro e sonho – para tudo que é criança atualmente não praticante; queria garantir tudo que é adulto num emprego pleno, estável, próximo à sua casa estável e plena, para dar tempo de fazer mais linda a infância dos filhos; queria alimentar todos com largas farturas, feijões inteiros, arrozes inteiros, carnes inteiras, vegetais excelentes, nada nada nada de fragmentos aviltantes; queria enriquecer professores e escolas; queria libertar os reféns de traficantes e milícias, e AS reféns de relacionamentos abusivos; queria disseminar terras entre agricultores familiares; queria reformar o sistema carcerário e o de saúde. Queria – quero –, enfim, o que se convencionou chamar impossível; mas a não ser o impossível, fazer o quê? Com que mais ia gastar dinheiro e tempo, tivesse a estranha honra de ser bastante e secretissimamente poderosa?

Não havia de ser para ficar (de) prosa.

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