quinta-feira, 16 de setembro de 2021

Pés de lua


Sixteenth of September é o nome (não me perguntem por quê) dessa obra de René Magritte lindamente reproduzida acima. Acho deslumbrante em sua quase simplicidade: uma árvore, tema recorrente do pintor, destacada no meio do campo dentre as demais árvores, e portadora duma pequena lua crescente como um seu fruto único. Pedras circundam esse pé de lua – as formas pousadas mais ao longe no chão sugerem, aliás, que as pedras contornam a árvore inteiramente, estabelecendo-a como um espaço sagrado de ritual. Não é apenas uma protagonista vegetal, é uma sacerdotisa com tiara de lua pendendo sobre a testa, uma rainha mística dos espaços remotos; uma (perdoem-me a flexão bel-prazerosa do idioma, mas é UMA) símbola.

O pé de lua de Magritte é claramente fêmea; em primeiro lugar vem da terra o mais direto que se pode vir, o que põe o telúrico no quadro de maneira gritada, explícita; em segundo, banha-se no telúrico conotativo da noite, veste-se do luar azulado – e não se sabe do luar senão que seja vestimenta de mulheres. Ela mesma, árvore, é a noite, mais até do que a própria, já que no horizonte ainda resta bastante luz para que a escuridão seja sobretudo dela e para que os pequenos intervalos de suas folhas, por contraste, assumam o papel de céu estrelado. Não há lua nem estrelas no "verdadeiro" céu, que é liso e sem contrastes; toda a celestice, toda a majestade noturna estão na rainha de Magritte, firme e poderosa, nada econômica na intensidade das curvas e nem por isso menos ereta, menos focada em abrir caminho imensidão vertical acima.

Bem que somos todas, como a árvore de Magritte, pés de lua: distribuídas e objetivas, multirrâmicas e céu-direcionadas, concebedoras espaço-sagradas do fruto que tivermos na cabeça. Sabemos tanto abrir lacuna para que a luz nos vaze (e vaze de nós) quanto nos apossar da luz na fonte, ainda que indireta; somos tanto lunares quanto estelares; nos alimentamos do concreto mas crescemos capazes das abstrações mais ricas, dos absurdos mais lindos. Podemos brotar milagres de floração no meio da aparente normalidade e viver com (determinadas) pedras sem que elas nos limitem as perspectivas. Eu só mudaria na pintura, com perdões do autor, o isolamento dessa árvore simbólica: fêmea que é, há de estar abraçada e aprumada pelos ramos das mais, e não há de ser menos rainha; as outras, sim, é que serão majestadas no mesmo nível, e as copas de todas hão de desenhar o mesmo céu, e a lua vai se pendurar em todas como um mesmo fruto. Muito mais verde que ter um pé de lua crescente é ter um pomar, uma fartura, uma plantação de lua.

Cheia.

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