sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Incondicionalidades


Vi há pouco o vídeo de uma moça cuja gatinha de estimação simplesmente ODEIA tudo que respire, gente ou bicho – com menção honrosa para crianças (que segundo a tutora estão sempre felizes, e a peluda detesta felicidade). Não estou exagerando; a bichana é um capiroto que mia, o demo de quatro patas, o felino de Rosemary. Considera a casa, a rua e basicamente o planeta como seu espaço pessoal, fica constante e profundamente ofendida se a dona OUSA estar no mesmo cômodo (não raro o atravessa apenas para atacá-la), persegue inclusive outros gatos durante o passeio, estraga qualquer tentativa de confraternização de seus humanos, ataca, arranha, morde – enfim, é o Jason manifestado em Garfield, a Miranda Priestly dos Jellicles. O único e exclusivo objeto de seus amores é o pai da tutora; fora esse alvo aleatório de devoção, o universo pode acabar em Whiskas para ela morrer devorando todos os seres viventes.

Como quase qualquer representante de nossa espécie que busca essencialmente feedback e validação, eu já me perguntava como a mãe da felina aguenta morar com uma gremlin que a odeia de forma tão explícita, quando às tantas do vídeo a própria santa respondeu, para meu vexame (respondeu em inglês, so relevem a adaptação improvisada): "Muitas vezes sou questionada sobre o porquê de não desistir dela. Eu não acho que gatos devem necessariamente amar você para que você tome conta deles, porque eles são família. Eu amo minha gata ainda que ela não me corresponda. Gatos como Nanoos [o nome da monstra] normalmente não são adotados. Meu objetivo é apenas fazer com que ela tenha uma vida feliz. Lá no fundo, talvez ela seja um pouquinho grata pelo fato de ser eu a sua dona". Embarguei-me inteira e tropecei em mim; é isso, é exatamente isso, é precisamente ESSA a incondicionalidade do amor cuja apologia fazemos tanto mas que limitamos a um post bonito, sem aplicação prática. Com poucas frases e ações em série, a mãe de Nanoos samba no nariz de séculos de teoria amorosa, pisa firme, esmaga fundo a pretensão que temos de saber do amor – nós que não conseguimos conviver com a rejeição de quadrúpedes irracionais movidos a sachê.

Nem preciso dizer que, neste caso, não está contemplado o tipo de amor que SÓ se constrói recíproco, o amor de duas pessoas que se elegem e se dão e se recebem em pé de igualdade; numa relação de casal não há espaço para patadas e arranhões mansamente aceitos porque o outro, tadinho, não sabe o que faz. A aceitação incondicional exemplificada pela tutora da the mônia felina apoia-se na premissa (como me parece claro) de que há um amor no qual uma das partes é dependente da outra e, ao mesmo tempo, imatura demais – ou privada demais de consciência – para responder-lhe à altura. Nessa vibe sim, cabe a unilateralidade na entrega, o afeto resignado a derramar-se sem retorno; é fenômeno possível entre pais e filhos, humanos e pets, cuidadores e cuidados, ensinantes e ensinandos, pressupondo-se sempre, portanto, um desnível de condições. E uma vez que esse tipo de vínculo se estabeleça – que alguma adoção se tenha realizado por parte do mais adulto, mais capaz, mais autônomo –, pronto, o sarrafo é exatamente o colocado pela mãe de Nanoos: não se fala em devolutiva, não se exige gratidão nem correspondência em moeda similar, doa-se somente o que existe a ser doado, já que o objetivo é a doação em si mesma. Nessa espécie de amor o parágrafo da incondicionalidade pisca desde os primórdios no contrato; não sabe brincar de fazer com que o outro tenha uma vida feliz (o que, obviamente, NÃO QUER DIZER descontrolada e insana), nem desce pro play.

Amor de doadores é preciso que baste em si, parnasianamente. Ou é meríssimo egocentrismo o que se deveras sente.

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