segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

A casa vermelha

 
August Macke, pintor expressionista alemão nascido em 3 de janeiro de 1887, viveu pouco – faleceu na Primeira Guerra com precocíssimos 27 anos –, mas pintou com força, extrema força; principalmente, com o extremo da cor. Macke fazia do mundo versões afetuosas e intensas, dava à luz esses quadros em que queremos estar mergulhados, bebendo milhares de tons e alegrias dos pincéis nada economizantes. Veem aí a Casa vermelha no parque, de 1914 (ano de sua morte)? Impossível olhar para ela sem sentir um quer-que-seja que nos puxa para um livro de ventos uivantes e lembranças tórridas, de outonos dramáticos e verões definitivos, sufocados de amores e sagas. Eu, pelo menos, não consigo não caminhar pela estrada sanguínea que nos vem meio tapete de gala, meio braço da mansão, como se ela de longe estivesse doida por nós e ardente pela visita – provavelmente para deglutir-nos, é vero, mas encantadora ainda assim, dama vampira de olhos acesos.

Já viram um bosque tão iluminado em cenas noturnas, tão quase fluorescente numa mímese perfeita das janelas unissonamente gritantes? Prédio, caminho, árvores, tudo é como um berro vermelhorrosa-choque que nos agarra, um corpo uno, uma só identidade escarlate, um monstro ou força coral com cabeça, tronco e membros ao longo de toda a tela. A casa não apenas atrai e domina como envia tentáculos emissários, que se antecipam à (e antecipam a) sua enorme presença vermelha: passeadores da estrada, eu vos suspeito, eu vos abraço; vinde e escarafunchai meu desconfortável mistério.

E apesar de ser realmente desconfortável que uma luz carmim tão estridente cubra inteira a casa na floresta, a construção não se torna 100% ameaçadora; há nela algo simpático e esperançoso, como se um Drácula abandonado esperasse ali novos convivas sem a intenção de temperá-los para a janta. Pode ser também que aí more uma princesa ruiva, muito ruiva, de tal modo ruiva que tudo se enruive a seu contato; pode ser que os donos originais da mansão tenham sido uma família de guerreadores, e que descendentes dalguma vítima tenham desejado que, a cada morte provocada, mais o terreno se avermelhasse; pode ser que alguma criatura sequestrada para dentro do palácio haja rezado tanto, tanto para ser encontrada que tudo que era marrom se acendeu empurpurado, indicando o endereço do crime. Pode ser até que o anfitrião morra de medo da noite, e tenha tingido toda a região com tinta de fogo para atrair a atenção perene do sol. Ou, sabe-se lá, talvez seja do fogo mesmo que ele anda enamorado; ou é desejo da filhinha doente morar dentro de uma rosa que não acaba nunca. Seja o que seja, poucas vezes vi ao mesmo tempo tamanha simplicidade e tamanha densidade numa casa-aparição, dessas prontas pra virar lenda e personagem sob pitadas fulgurantes de prosopopeia.

Ainda está aberta a caixinha de sugestões? Lembrei: há de ser muito possivelmente uma fênix da arquitetura, uma residência que se autocarboniza e se refaz de alguns em alguns anos, para ir acolhendo novos passados de novas gentes. Ou (já paro) é de uma biblioteca que se trata – uma que foi ganhando esse corado pela evaporação das leituras, acumuladas com grossa secularidade nas paredes e entornos. Ou vai ver é a ciranda das dedicatórias apaixonadas que despertam, doidas, e se jogam contra a estrutura dos cômodos numa procura frenética de pulsação.

Que no peito das casas de homens e de livros também bate um coração.

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