sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

O preço


O poeta e revolucionário José Martí – hoje aniversariante de 169 anitos, e tão essencial para a independência de Cuba que é lá conhecido como El Apóstol – disse com toda sabedoria e experiência própria que "a liberdade custa muito caro, e temos ou de nos resignar a viver sem ela, ou de nos decidir a pagar o seu preço". Martí pagou seu preço, sacando o valor da imensidão de bravura de que era dotado: foi um dos grandes mártires na história da libertação do país natal – extremo de heroísmo que provavelmente nunca nos será exigido, mas que tem gordas chances de ser fragmentado em milhões de pequenas prestações de heroísmo a serem pagas por todos os buscadores de liberdade autêntica.

Naaaaada tem a ver com essa "liberdade" estereotipada, ridícula, estúpida dos antivax; nem nadíssima tem a ver com o direito legal de comprar/portar instrumentos de assassinato. Isso não é liberdade, é bateção de pé de criança mimada, de criança estragada que se joga no chão do mercado e berra porque quer porque quer porque quer (ou não quer não quer não quer). A liberdade legítima não tem o componente do egoísmo e é atravessada sempre pela dimensão coletiva: tudo que pertence a alguém pertence-lhe apenas se não tiver sido tomado de outrem – a não ser, claro, que esse outrem tenha sido o primeiro a tomar algo indevido e seja crucial uma devolução, não por vingança mas por justiça direta; libertar terras colonizadas, por exemplo, obviamente não significa tirar nada aos colonizadores, e sim reafirmar a posse dos nativos. A liberdade só concebe pegar algo que já lhe pertencia, o que se estapeia com o caso dos armamentistas e antivacineiros, que não têm forma de alcançar o que desejam sem ser surrupiando uma grande parcela da segurança alheia. A regra é clara: se arrancou algum naco da liberdade de outro, já cometeu pênalti, e vai ter de ser gentezinha grande pra segurar as pontas da cobrança.

Ah, a cobrança – preço que pesa mais salgado nas negociações da liberdade, porém não para os cobrados e sim para os cobradores. Os cobrados, afinal, estão necessariamente em vantagem: metem mesmo a mão grande na autonomia do outro, exploram, expulsam, exterminam, espoliam, escravizam, tudo mais ou menos sem delongas e seguramente sem escrúpulos; de modo geral se organizam em milícias e corporações que, ricas e poderosérrimas, legalizam seus feitos legislando em causa própria, e pronto, está criado um feudo de opressão que definitivamente não há de abrir mão de seus privilégios pelos belos olhos do oprimido que solicita sua liberdade de volta. Não haverá nunca, infelizmente, uma epifania de bondade nos exploradores, uma síncope de reconhecimento de suas próprias culpas; a liberdade SEMPRE deverá ser defendida por quem está na base da pirâmide, sob eterna ameaça de perdê-la. Justo não é, não foi jamais, mas é assim: toda liberdade assegurada a pobres, negros, mulheres, indígenas, sem-terra, pessoas LGBTQIA+ e demais grupos historicamente prejudicados em seus direitos – toda essa liberdade só pode firmar-se se souber que não chegará a estar firme o suficiente para abrir mão da vigilância ininterrupta. Cada conquista não é troféu garantido, é luta perene: voto, mobilização, abaixo-assinado, manifesto, palestra, boca trombonante nas redes sociais e demais mídias, insistência, teimosia, briga nos tribunais. Ainda que não cheguemos (como chegou José Martí) a dar a vida pela causa, não conseguiremos estar desobrigados de empregar nela boa parte da vida, como se engajados num revezamento de olhos que zelam dia e noite contra o bote do predador.

Opressores não dão liberdade, não vendem liberdade – ocasionalmente são forçados a alugá-la por temporada. Ai de nós se ficarmos com a guarda abaixada.

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