quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Pró-vocações


Não sei como (ou sei, porque as pessoas são substantivos necessariamente compostos), mas tenho ao mesmo tempo um espírito cansado e tendente à aventura.

Duvidam, claro; pois tenho. Minh'alma é avessa por exemplo a arrumações definitivas, dessas que rasgam, que suam, que encaram; simultaneamente, se agarra à tarefa (qual? qualquer) que HÁ DE SER feita e a faz, ou muito mais do que a faz – é traspassada por ela, atravessada e possuída pelo interesse ou pela urgência. Hesito longos & longos & longos dias em resolver cada pendência burocrática, e no entanto sou bastante capaz de desenvolver habilidades inéditas que levem à solução de-repenta do que ficou meses parado. Enrolo excessivamente para cumprir obrigações me-transmitidas e TAMBÉM posso, num impulso, ir aonde nunca supuseram e realizar o que nunca esperaram. Não é para ser do contra, não é para coisa alguma, é sem elaboração nem propósito: quero apenas produzir o quanto dá com a menor tonelada de compromisso.

Sublinhe-se que não sou irresponsável, aliás sempre fui das melhores alunas, conforme já disse e redisse – mas o era por brio e não por amor, por adaptação e não por devoção; e saber-me assim tão pronta e resiliente a desafios específicos quanto sonolenta e arredia a enxurrada de deveres acabou alertando: criatura, ai dos teus dependentes, se os tiveres. É isso, conheço-me com suficiência para saber que filhos, pets, plantas e até carros hão que ser evitados, o que espero não me desenhe como um monstro de egoísmo; carrego, repito, um espírito cansado e inteiramente refratário a dependências totais, embora apta a devotamentos extremos. Sou, coloquemos assim, uma alma feita para afilhados, para sobrinhos: muito dada a zelar por fora, financiar se possível, mimar às vezes, estar presente se necessário, mas sem a integralidade, a incondicionalidade das mães (OK, das mães idealizadas – óbvio não serem também super-heroínas ou mulheres de ferro). Não me choveu nunca a vocação materna; arranjaria no máximo um estágio de sub-anjo da guarda interino isento de dedicação exclusiva.

"Ahn, mas assim até eu." Certo, é a parte "fácil", porém notem que autodirecionada e pré-escolhida como se escolhe uma profissão pelas aptidões que acontecem ou não acontecem; não me aconteceu de nascer necessitada de – ou qualificada para – afeições de algum modo maternais, e ter disso a plena ciência antes de qualquer empreitada no ramo me parece ao menos sensato e evitador de sofrimentos múltiplos. Como tenho o maior horror do universo a causar sofrimento a quem quer que seja, fatalmente seria aquela que se força além do limite e nem chorar chora, por total aversão à ideia de arrependimento ligado à existência duma vida; ou seja, eu faria o impossível para dar conta emocional e adoeceria sério, sem a menor dúvida. De que maneira fugir ao estranhamento, ao olhar-de-través social que acalenta expectativas e aguarda padrões? Conhecendo-se muito e o mais razoavelmente cedo; observando, observando-se, forçando-se a atentar para questões diversissimamente alheias e entender-se naquele lugar mui previamente a assumi-lo como seu; não romantizar nunca, não romantizar nada. Inspecionar quais seriam as frustrações mais prováveis, quais as mais lidáveis, quais as menos dilacerantes.

Mas tudo antes.

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