domingo, 16 de janeiro de 2022

Em tudo há um sentimento vigilante


Num poema de Maria Lúcia Alvim: "Em tudo há um sentimento/ vigilante/ que procura vir à luz do dia". Não pensamos nisso, ou ao menos não pensamos nisso a respeito de tudo, mas é fatão – de tal forma impomos silêncio social a cada pequeninice pressentida, sentida, imaginada, num (necessário) esforço em prol da aceitação e da viabilidade de convívio, que cedo ou mais cedo estrangulamos a verdade basilar, o sentimento vigilante que anda no fundo de todas as coisas. É o amor que não tem mais a coragem desorgulhosa de vir à tona, é o desprezo visceral que reprova terminantemente a si mesmo, é o ressentimento que não se assume no controle, é a exaustão física e moral que tudo perpassa e nunca se dá o direito de gritar sua urgência; são as essências, a nudez simplíssima de quem somos e de quem os demais nos são, a que basicamente não se concede a graça de existir, quase que desde o dia zero-um.

Não significa, é certo, que em nome dum suposto autorrespeito vamos sair pelas estradas cuspindo marimbondos em todas as fuças, ou agarrando e beijando quem nos apraz, ou metendo eye-rolling desde a apresentação no trabalho até a reunião de condomínio. Seria o caminho mais fácil para praticarmos ou sofrermos homicídio antes dos dez anos de idade, ou seja, nada menos apetecível para a sobrevivência da espécie do que a mais sincera onipresença do id – egoísta, desorganizada, potencialmente violadora, rapineira e fadada a impossibilitar qualquer relação humana. Já falei e repito, e trepito, que honestidade não há que ser usada como álibi para a falta de educação dos preguiçosos; honestidade legítima aprende a ter palavras suficientes para não precisar ser brutal, e se em última instância tiver de ser brutal (com um fascista, por exemplo) ao menos saberá não ser cruel. É justamente essa, a limpa sinceridade forte o bastante para se constituir translúcida sem grosseria e reativa sem vingança, que carecíamos cultivar já no berço – porém nos escapa já no berço, onde aprendemos a sufocar de colchões cada uma de nossas ervilhas em vez de suavemente dar-lhes terra.

Precisamos de terra. Precisamos nos fincar, nos plantar, espraiar raízes tão genuínas que toda manifestação externa venha a ser consequente, e como que sobressalente. Se nossa História com agazão e nossas histórias com agazinho nos facilitassem a vida, caules e ramos e copas e etcéteras teriam o mais alongado tempo de mostrar-se ou não mostrar-se, exibir-se ou não exibir-se conforme suas tendências; mas não, somos como que forçados a já alardear flores suspensas quando sequer passamos a limpo as raízes, impelidos a um comportamento todo exterior sem que antes as bases se tenham firmado. O resultado é que, postos no palco sem suficiente ensaio e condicionados por treinamento e não por autoconhecimento, ignoramos o que nos nutre e focamos em participar da floresta. Participar da floresta é bom, essencial inclusive; não há, no entanto, como entrelaçar galhos em outros galhos se no chãozão andamos bambos, incertos, prestes a sucumbir por excesso de peso depositado num alicerce que não pousa.

Flores são excelentes, asas são ótimas, mas em geral o que primeiro nos falta é: repouso em nós. Se nosso sentimento vigilante não tem estrutura de vir à luz do dia germinando em sossego, há de vir inevitavelmente nem que feito enfarte, burnout, raiva, fobia, melancolia, vulcânico de algum modo; e há de ir queimando o entorno onde, cada vez mais, menos coisa brota.

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