terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Manifesto do livro livre


Acompanhamos sempre essas irmão-à-obrices que reformam cômodos ou imóveis inteiros, e há tempos observamos com perplexidade que muitos decoradores, ao arrumarem os livros na prateleira, deixam os bichos com as páginas à mostra e a lombada para dentro. Ora, isso naturalmente me dá a agonia mais doida; QUEM catapimbas arruma as obras assim em sã consciência, se é impossível achar qualquer título que se queira num mar de páginas brancas (amarelas, no meu caso) praticamente idênticas? Eu cá comigo achava: vai ver que é alguma coisa de direitos autorais, de não querer fazer propaganda de um ou outro autor, só pode ser – e, assim que as câmeras virarem, os livros também voltarão às condições normais de temperatura e pressão, balançando a lombadinha na cara dos residentes. Era a única explicação a que esperançosamente se agarrava minha ansiedade livresca.

Mas eis me apareceu uma postagem retuitada que comentava justo essa "nova mania" do design: esconder as laterais coloridas e intituladas das obras a fim de se obter "uma decoração mais neutra". Oi? stop o planeta que meu ponto é aqui. Então quer dizer mesmo que a neutrite aguda dos donzelos chega ao ponto de tratar LIVROS como EMPECILHOS para um visual clean, limpo, básico?? Será possível que os douradinhos elegantes de algumas capas duras, a variedade lindona de tons e fontes, de tempos e estéticas sejam elementos desarmonizadores de ambientes em que livros deveriam ser reis? Mal acreditei no disparate dessa concepção que, sobretudo, trata peças literárias e afins como bibelôs, lustres, cortinas, enfeitadores de cômodo, em vez de respeitá-los no que são de fato: reflexos vivos e diretos de seus donos, embaixadores do pensamento que ali habita. Calar quem o livro é, visual e nominalmente, não difere muito de sair abaixando todos os porta-retratos ou voltando-os para a parede, porque a cor do vestido usado na foto não está no universo cromático do sofá, do tapete, da almofada. Muitíssimo em desacordo com os profetas do igualzinho, eu diria que não há nada mais absurdamente cafona em decoração do que padronizar, impessoalizar, deixar claro que aquele é um cômodo grifado e não vivido, arrumado para a matéria na Caras e não para uso das gentes – eternamente vestido para sair como pessoas de novela, e não para andar em casa.

Livros não são estorvos nem objetos friamente decorativos, são lembranças de nós, extensões de nós, pedacitos de formação e interesse que semeamos onde andamos plantados; sua presença é instigante, cúmplice, reveladora, jamais vergonhosa ou inimiga. É para se espalharem mesmo, brincarem exibindo suas true colors, seus nomes e feitios, e se afrontarem visitas há que escolher melhor as visitas, e se causarem vergonha há que escolher melhor as leituras. Let them be, deixem que livros sejam livres para ostentar as celuloses e mostrarem quem somos; toda a moradia (como todas as moradias) deve se acomodar em torno de seus viventes. Nóóóós e os transbordamentos de nós habitamos e ocupamos nossos espaços – quem não gosta que vá neutralizar outra freguesia.

E pegue dicas de design na livraria.

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