domingo, 30 de janeiro de 2022

De luvas e coelhos


Quem assistiu a Ataque dos cães, filme baseado no romance de Thomas Savage, dirigido/roteirizado por Jane Campion e protagonizado por Benedict Cumberbatch, foi constantemente atravessado pelas metáforas da luva e do coelho. É essencial e lindo que seja assim em histórias de muitos não ditos, de muitas denotações enviesadas na garganta, forçadas a não ver a luz pela total ausência de ambiente – pelo clima de estrangulamento ou cansaço emocional nascido do lugar e da época. São, no caso, os Estados Unidos caubóis de há quase cem anos, travados para quaisquer discussões que não fossem coisas de macho (ou superficialidades perfeitas) e bullyingadores de fraquezas, carências, necessidades, hesitações, solidões e demais profundezas humanas que o simplismo próprio da covardia achasse de considerar frescura.

Nesse contexto de mutismo doentio, é notável como a presença/ausência da luva grita eloquências sobre os três personagens mais atribulados do enredo (recomendo que os não assistiram e ainda pretendem assistir não prossigam na leitura): para Phil Burbank (Cumberbatch), a insistência em trabalhar com as mãos nuas é o mascaramento-mor de sua alma que, tanto quanto o restante do corpo, não se despe a não ser no isolamento mais completo – e em última instância é a nudez das mãos, a nudez encobridora e simbólica de seu recalque generalizado, que lhe custa a vida. Para Peter Gordon (Kodi Smit-McPhee), ao contrário, o vestir calculadíssimo da luva é o índice maior de autoconsciência, autolealdade com que se joga em seu plano, por mais que haja temporárias e apenas aparentes concessões dentro de sua verdadeira natureza. Finalmente, para Rose ex-Gordon, atual Burbank (Kirsten Dunst), o calçar das luvas dadas pelos indígenas é não uma deliberação – como no caso do filho –, mas um lembrete dessa verdadeira natureza, ou da verdadeira natureza do mundo sensível, macio, delicado, generoso a que ela espontaneamente pertence.

E os coelhos? esses são um comentário esperto sobre as ações de Peter a respeito dos homens que infernizam a alma aveludada de sua mãe. Sim, os homens; não se pode ignorar que a primeira fala do jovem no filme – "Quando meu pai faleceu, tudo que eu queria era a felicidade de minha mãe. Porque que tipo de homem eu seria se não ajudasse minha mãe? se eu não a salvasse?" – certamente não se refere somente ao plano futuro de livrá-la da influência de Phil, e a própria construção dúbia e ensaboada do que é dito sugere que o rapaz, tendo literalmente matado dois coelhos durante o longa, matou também dois metafóricos. Para deduzir que Peter tirou seu pai alcoólatra da vida de Rose, já nos eram suficientes os atos posteriores do moço com relação ao tio postiço, além da informação de ter sido ele mesmo a encontrar o pai suicidado; mas para corroborar há as circunstâncias da morte dos dois coelhinhos: o primeiro, morto para dissecação – remetendo ao fato de o falecido Sr. Gordon ser médico; o segundo, morto à maneira caubói, e para aliviar o sofrimento da pata quebrada – o que se relaciona com a situação de Phil, a presumível segunda vítima, que aliás também machucara a mão seriamente (e era também animal escondido, caçado por Pete numa espécie de toca). É narrativamente marcante que Peter, sem na realidade desmentir nunca sua essência e seus propósitos, se mostre capaz de ser a luva e apreender, e mimetizar cada um dos obstáculos mencionados em falas-chave; não é certamente à toa que se destaca sua fiel preferência por tênis brancos pouco adequados para um rancho, mas igualmente sua arte em trocá-los por botas durante o estrito período necessário.

Era preciso não haver tantas amarras internas em Phil Burbank para lhe ser possível perceber que não lidava com alguém que precisasse aprender a usar a corda.

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