domingo, 23 de janeiro de 2022

Mulher e moça


Faria hoje 190 anos o fabuloso Édouard Manet – que não é meu bem-amado Monet, mas que foi igualmente porreta e definitivo no Impressionismo, com obras iconiquérrimas como Olympia, O tocador de pífaro e Almoço na relva. Exatamente pelo peso célebre dessas telas que todo mundo conhece de enciclopédia, porém, me permitam namorar o gênio de Manet com base em outras não menos fascinantes, apesar de "anônimas": Mulher com um gato e Moça no jardim, ambas de 1880. É uma pena gigante que preciosidades assim andem mais na pipoca que no camarote da história, pelo menos em termos de reconhecimento público, quando ilustram tão maravilhosamente a alma do movimento impressionista – as pinceladas que parecem milagre e feitiço, a maneira extasiante de delinear fingindo que nem, a precisão formada por mil imprecisões, lançadas na superfície como um idioma que também alcança perfeitamente quem não o fala.

Abraço essas obras específicas por serem estreladas por mulheres, e de modos tão distintos: uma em cena interna, reconcentrada, intimista; a outra, numa exuberância colorida e solar, coberta de primavera. Em Mulher com um gato, apaixona-me muito como é construído o rosa do traje – na realidade um zigue-zague desde o tom alaranjado até o lilás –, assim como me choca docemente que consigamos ver o dourado vivo das molduras sem efetivamente vê-las. Mais extraordinária é a expressão da personagem que dá título ao quadro, infinitamente pesarosa e distante do gato que a acompanha no título e que nem sabemos se acaricia; o mais provável é que o bichano lhe tenha o máximo de confiança e amor, ou não se espapaçaria tão franco em seu colo (gatos: nós os sabemos), mas a despeito dessa relação de intimidade quase certa o olhar da felizarda viaja tenso, perplexo, gemendo também com a mão esquerda um "o que faço?" que por pouco não é audível. A personagem pode sem dúvida estar COM o gato e – na opinião do animal – pertencer-lhe, e no entanto PARA o gato ela certamente não se encontra, envolvida numa das mais palpáveis absorções de espírito existentes numa tela que deveria, supostamente, negar-nos o dom da minúcia.

Incrivelmente, a Moça no jardim é tão adivinhável, em sua postura relaxada de quintal florido, quanto sua irmã o é no cômodo de molduras douradas – e vejam que sobre a fisionomia da jovem leitora pesa o chapeuzinho disfarçante, além do fato de os olhos estarem repousados no livro. Em tese nada contribui para que adivinhemos e distensão e a suavidade do rosto, porém as adivinhamos alto e claro; e da mesma forma adivinhamos uma leitura a tal ponto ardente (aliás, como não comentar a perfeição minimalista dos traços que estruturam as páginas?) que são justamente as flores de maior calor a vir beijá-la. Algumas rosas – que alegria reconhecer a perícia do pintor em afirmar com poucas linhas que SÃO rosas! – contornam de inocência a personagem, mas são as não-rosas vermelhas que denunciam o incêndio embutido na ação de ler. Em contraste com esse fogo simbólico, a moça é vestuariamente confundida com a água, a placidez que é entretanto fluida, fértil e mutável; e não deve ser à toa que a fonte-regador (pintada nos tons da roupa da jovem) está posicionada para as flores como a leitora para o livro, numa sugestão do derramar-se recíproco entre receptor e obra. Ambos se fecundam e são fecundados: tanto o texto adentra seu público como semente quanto passa a pertencer àquele que o completa.

Édouard Manet disse isso tudo? Possivelmente não, mas foi direitinho o que me pareceu ter ouvido. Saramagueando, sugiro que "se podes olhar, vê; se podes ver, repara"; qualquer construção dum gênio em serviço é palestra rara.

Nenhum comentário: