segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Para deixar de ser ontem


Eu lia poemas, porque vez em quando leio poemas, preferencialmente aleatórios (disciplina em literatura, argh); num de Marcos Samuel Costa – "O tesouro guardado de Celton" – gritou-me uma estrofe que sozinhamente já seria um haikai e curiosamente não é, é apenas parte do todo: "ainda não amanheceu/ o dia já acordou/ mas a noite não morreu". Pensei que sim, não raro ocorre; é nada incomum que se adentre um dia sem parecer que deixou de ser ontem, sem parecer que não estamos caminhando apenas na parte 2, mais ou menos como 2020 e 2021 que se amalgamaram na (in)consciência coletiva. Quando acontece? quando a noite não morreu, ou antes quando não colocamos um sono no meio para cerimoniar o tempo. A sensação do tempo é em tudo cerimoniosa; sem seus marcos coloridos de avanço maratônico, empaca na cabeça e não nos deixa à vontade para arrancar papéis da folhinha.

Sem uma formatura nem que simbólica para nos botar fora de qualquer estágio acadêmico, sem uma foto, um capelo, um canudo vazio que seja, um cartaz escrito "Turma de 2004", um painel de bolas, qualquer ícone demarcante da etapa concluída – a etapa seguinte hesita em seguir, como aguardando autorização para decolagem interna. Sem uma trocazinha mínima de alianças e/ou votos, uma celebração que grita aos ventos religiosa ou laica ou ecumênica, um buquê para ir ao cartório, uma filmagem, um beijo motivado e testemunhado, um almoço de amigos – a união tende a guardar a frustraçãozita de não se ver oficialmente iniciada, assinalada, assumida, festejada pública. Sem a despedida mística ou civil, física ou emblemática da pessoa que desapareceu da vida, sem o relembrar da trajetória, o enterro ou a cremação, a oração e o choro enlaçado, o envio de balões ao céu ou cinzas ao mar – é sempre como que duvidosa, interminada, indeterminada a morte; sempre uma vírgula, uma reticência pendente e estranha, ainda que após anos e anos de por enquanto, feito história que vira vira vira sem capítulo que acabe. Se um ato não cai com cortina e tudo, o outro se engasga, se adia; é preciso que uma noite morra em nós para que outra data se fixe, decididamente inebulosa.

É preciso que o que quer que seja antigo adormeça – já que nada amanhece com propriedade na jurisdição das horas anteriores –, que adormeça de uma pequena ou maior morte, de qualquer falecimento suficiente para que o enredo se veja recomeçável. Os olhos já sem o subpeso roxo dos cansaços velhos, os neurônios devidamente frescos para tarefas inéditas, os suores lavados para pousarem em novos esforços, tudo limpo, tudo pronto, tudo livre de pesos naturalmente arquiváveis, mas não carregáveis ad infinitum. Que a natureza se tenha constituído cíclica e nos tenha feito dependentes do sono não passa de ultimato: dorme, criatura, dorme, ou nada de tuas novidades acordará nunca, nem por um momento sequer arriarás o fardo da própria companhia.

Dorme – para elaborar outro dia.

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