sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Olha pro céu, meu amor


Muitas décadas depois de a população da Terra haver assistido a Não olhe para cima, assistimos também. É inegavelmente bom, embora não extraordinário; tem um timing assustador – até assustador demais para ter dado tempo de casar com a pandemia, da qual é retrato perfeito, apesar de a metáfora mais intencional e óbvia ser a do aquecimento global – e deve sem dúvida estar entre os indicados ao prêmio douradinho. Acredito que Leo DiCaprio ganhe sua merecida vaguita entre os nominees, possivelmente alguns outros atores na coadjuvância (céus, espero que não Mark Rylance, que vem fazendo um insistente papel de Mark Rylance há meia dúzia de produções), provavelmente Adam McKay na direção e roteiro, Hank Corwin na montagem, galera dos efeitos visuais. Vamos ver, vamos ver. O que mais me comoveu porém, de todo o justificável buzz em torno do filme, foi o detalhe de como é perfeitamente viável desmentir e trollar a máquina, desde que se seja perfeitamente humano.

(Para quem ainda não viu – o que não creio, já que comprovadamente fomos os dois últimos seres no planeta a clicar no link da Netflix –, que a leitura acabe aqui; meus meteoros de spoiler não demoram os seis meses do cometa Dibiasky.)

Certo, não é viável desmentir ciências e cálculos acuradíssimos a respeito do que não depende da atuação humana, ou é deixado solto e frouxo sem sua interferência: a trajetória de um asteroide matador, o aumento das temperaturas, o índice de contaminação dum vírus, por exemplo. Esses, se objetivamente enlaçados apenas em progressões matemáticas, hão de seguir tal e tal gráfico e acabou-se. Mas é lindo como o longa ilustra, com inusitada delicadeza dentro duma realidade tão histriônica, o quanto nossas decisões humaníssimas engolem a previsão fria dos algoritmos sobre o que elas virão a ser. Quem assistiu sabe que me refiro ao fato de os instrumentos poderosões da BASH, megablasterempresa que povoa o filme – e tenta povoar algumas coisitas mais –, terem profetizado algo medonho para Randall Mindy, personagem de DiCaprio: ele morrerá sozinho. No entanto, a característica que menos pode se aplicar à morte real do cientista é solitária, uma vez que ele faz questão de se cercar de todos os amigos/amados, na cena mais bonita e pacífica do longa entre as cachoeiras de caos, tensão, histeria e horror. Sim, o presságio o amedronta e o move a alterar sua trajetória, já que a do cometa parece imutável; porém o presságio não consegue pressagiar a escolha humana de mudar a rota, nem a escolha do perdão concedido, nem o imponderável das amizades recém-formadas e daquelas que se tornaram além-profissionalmente sólidas. No momento mais crucial de seus percursos, Mindy e os seus são capazes de olhar para cima em toda a gama telescópica da metáfora – e então já não existem cálculos que sacudam o que os segura mais firmes ao chão comum.

Há um evidente contraste-piada entre o destino voluntariamente encaminhado de Randall e o da presidente (presidenta é um termo que só uma Dilma tem envergadura para merecer) Orlean: ela, ao contrário do professor, não tem neurônios suficientemente ativos para fugir a determinações algorítmicas, como aliás demonstrava não tê-los para deixar de ser joguete entre os números das urnas, as circunstâncias políticas, os cifrões do patrocinador Peter Isherwell. Orlean não aterrissa nem em seu próprio planeta como gente digna de portar o título; não admira nadíssima que aterrisse em outro com o mesmo robotismo apenas cumpridor de prognósticos. A velhérrima história de a cabeça não pensar e o corpo padecer, incorporado e reduzido à cadeia alimentar mais primitiva, mais ridiculamente animalesca.

Comentar o quê dum tal augúrio? Vem, bronteroc.

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