quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Do poema pelo poema


Edgar Allan Poe, célebre interlocutor de corvos e cultor de histórias extraordinárias nascido num 19 de janeiro (de 1809), foi um dos únicos escritores lá do Tio Sam que me caíram no gosto (sim, não tenho paciência para a literatura estadunidense, desculpem). Do querido e descabelado Poe é que dizem ser a frase: "E nenhum poema será tão grande, tão nobre, tão verdadeiramente digno do nome de poema quanto aquele que foi escrito tão somente pelo prazer de escrever um poema". Não sei se concordo na prática – por total impossibilidade de averiguar o que motivou cada obra imensamente poética do mundo –, mas concordo na teoria, dado que a linguagem da poesia é, de per si, um inebriamento consigo mesma. Não é assim que aprendemos a função poética na escola? "o foco está na mensagem", decoramos bonitinho; o foco está na construção sacrossanta do texto como quem nada num ritual sagrado, como um pai ou mãe que penteia com solenidade o filho ou filha sem nenhum compromisso de exibição em casa de parentes, apenas pelo amor da lindeza.

Amor, disso é que se trata um poema (qualquer manifestação literária na realidade, mas ESPECIALMENTE um poema): trata-se de fazer amor vocabulária e estruturalmente, de amar por amar a língua, de – só pelo prazer de amá-la – kama-sutrá-la toda, explorar-lhe as possibilidades sem nenhumas obrigações de tempo ou de meta ou de encomenda, ainda mesmo que as haja. Um poeta não é poeta porque o forçam a ser, tanto quanto um apaixonado não se manifesta apaixonado porque é intimado a; se por acaso acontecem pressões de qualquer tipo, que pelo menos no ato da construção, da procura, do enredamento, da dinâmica, da relação entre autor e obra ou entre amante e amada(o) tudo que é exterior se secundarize, tudo que é peso se esvaia, a fim de que se plenifique o que é essencial. Existe a urgência da felicidade verbal na poesia como existe a do suspiro no amor (suspiro, metonímia da sinceridade feliz).

E os autores que sofrem horrivelmente o ato de escrever, declarando-se satisfeitos unicamente com o de haver escrito? Estão falando a verdade, não tenho dúvida: escrever é quase o tempo inteiro doloroso. Mas e o praz...? – Sssssh, a banda toca assim mesmo; o poeta é um fingidor, favor não esquecer. Simula inclusive para si uma angústia que no entanto o vicia, por ser mais ânsia que descontentamento, mais cansaço e frustração que desgosto; o autor sofre no desejar vencer-se, no desejar fazer mais, e não no desejar não fazer. Só se torna automentira e doença se a ansiedade da superação vira fobia, paralisia, e o medo (sempre ele, senhor das desgraças) engole a diversão por completo; aí a poesia já se terá esvaído para ficar exclusivamente o comércio do mundo, que tudo dispõe em termos de competição e negócio. O gozo sincero da arte pode sustentar-se com o mercado, porém não se realiza, não se executa pensando nele: criar sem nenhuma alegria gera o mesmo vazio prostituído de amar sem nenhum amor.

Não é que poesia desconheça a venda – mas a melhor se faz sob sua própria encomenda.

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