sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

A saúde essencial


Agudíssima a fala do escritor mexicano Marco Antonio Montes de Oca, ao cravar que "o amor é a enfermidade que nos devolve à saúde essencial". Olha que não cabem no mundo os ensaios de definição desse pequeno saci dos sentimentos, desse geniozinho mistamente melancólico e serelepe que nos confunde até a medula; mas não é que Marco Antonio conseguiu engaiolar em palavra uma porção gigante? Amor é enfermidade porque nos tira sem cerimônias da programação de fábrica – nosso default egoísta até segunda ordem –, e, em nos desviando do que a carne animal nos programa para ser, consagra o diferencial que nascemos para carregar, tornando o mundo não só possível: tornando-o compensatório.

O amor nos arranca a lógica dos escambos. Certo, numa sociedade eminentemente comercial vira loucura, vira aberração deixar-se de alguma forma espoliar, não por ausência de voz mas por escolha; e se apresenta ainda menos sã, na visão dum mundo organicamente orientado para a supremacia do mais forte, a subversão amorosa de pôr aquele que tem mais a serviço do que tem menos, aquele mais preparado ou rico ou potente ou sábio sob o chamado e as necessidades daquele menos estruturado, mais indefeso. O amor é o anticapitalismo, o antirreinado do poder, a antisselva, o anticomércio. Quanto mais sólido for, mais saberá inclinar-se; quanto mais avultado, mais disponível; quanto mais acumulante, mais distribuidor; quanto mais favorecido, mais concedente. O amor, lembram? é basicamente o codinome dum Deus que aceitou partilhar de nossa miséria, e quando se manifesta não se sabe manifestar senão com essa mesma generosidade escandalosa.

Sim, o amor é doido sob nossos parâmetros muito horizontais: topa doar-se a uma causa, ainda quando "não tem nada com isso"; adota incondicionalmente seres que não gerou, seres em que portanto não grita a demandante transmissão de genes – seres inclusive de outras espécies; adota também incondicionalmente os seres que gerou, e que nem por isso são de lida mais fácil, com suas individualidades não raro atordoantes; arrisca-se fisicamente para salvar quem não conhece, passa uma vida em pesquisa para curar quem nunca viu, larga família e continente para cuidar de quem nunca tornará a ver. O amor é absolutamente diagonal, oblíquo, descosido, estapafúrdio, e não porque egocentricamente queira chover rosas sobre uma casa amada, mas antes por querer plantá-las em todas. O amor é uma piada para os que conformam, um obstáculo para os que desistem, uma doença para os que só creem no que é calculável e medível.

E é a única saúde possível.

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