terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Liliva


Essa mulher que ainda não conheço por não ter sido inventada, chamarei de Maria Olívia – Liliva para sua irmã quatro anos mais nova, que a chamava assim nos primeiros balbucios e transmitiu a mania do apelido para o filhinho Afonso. Maria Olívia, tia Liliva, é a paixão de Afonso, criatura de dois anos rechonchudos que não compreende por que a tia não sorri mais frequente e esforçada, apesar de brincar fácil, fluida, inventiva e avessa a apatetamentos da criança. Tia Liliva brinca a sério: entra no papel e verossimilha a história, produz cenário, improvisa figurino; não deixa o samba morrer enquanto o arco dramático não acabar. Afonso adora as sagas vividas tardes adentro, das quais claramente não entende um sexto, mas que lhe deixam a impressão duma dessas memórias que o cérebro (não podendo garantir armazenamento em tempos tão precoces) tornará míticas. E aliás Maria Olívia é mítica ela mesma – etérea demais para dar certeza de que ali esteve gente, olhos encíclicos demais, atentos demais, tintos demais duma cor escapante que parece muito mel às vezes e às vezes muito açúcar queimado, ora excessivamente claros, ora ineditamente escuros; pergunte-se por aí e ninguém há de dar conta dos olhos de Maria Olívia, só se sabe que são grandes. A maioria os acha tristes. A maioria é distraída: são, na realidade, concentrados.

Maria Olívia não tem gato, embora todo mundo ache que tem, e não mora sozinha, embora todo mundo ache que mora; vive num apê de vila com a ex-colega de faculdade que virou o mais próximo duma amiga próxima, por ter o dom de não mexer em silêncios. Quando não está cosendo peças de feltro para compor a tarde afonsina seguinte, Liliva recorta milhares de quadraditos de retalho que formam papéis de parede, colchas, bichinhos, especialmente capas de álbuns; álbuns, filós e broches antigos são o encanto de Liliva. Boa parte de toda essa produção silenciosa do quarteliê é vendida na internet e paga as contas principais; o restante da boletaria se paga com traduções de francês, catalão e russo. Liliva queria privadamente ser russa e está pensando em colecionar matrioskas, porém não se atreveu ainda a nenhuma peça, crendo com razão que, ainda que tivesse bastantes prateleiras, as bonequinhas não se destacariam contra o universo retalhoso do perímetro. Além do mais, Maria Olívia também guarda o desejo camuflado e ainda inexecutável duma moto.

Maria Olívia acha que nunca amou ninguém, julietamente falando, e no entanto seu desconforto ao lembrar outro colega de faculdade a desmente; ela jura que um dia há de cobrar um empréstimo de livro prometido – o problema é não ter certeza mais de qual, mas tudo bem, o moço também certamente não lembrará nem estará pensando nela ou em conversas idosas. (Acontece que existe sempre a possibilidade de estar, e isso a apavora mais do que gafanhotos.) Fora amar sem coragem e brincar com gana, Liliva tem uma queda por bordar aventais – curtiu horrores bordar três para a escolinha de Afonso –, observar cisnes, ver vídeos com piadas de tradução, postar mensagens encorajando artistas de rua, sonhar em destruir telefones, pensar em fazer curso de grafite ou jardinagem ou alguma língua do leste europeu. Infelizmente ela reconhece que não tem o dedo verde como gostaria, e que talvez fosse mais profitável um idioma oriental, porém jamais se entendeu com japonês, coreano, mandarim.

Se Liliva existisse, seria assim.

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