sábado, 22 de janeiro de 2022

A tal filha


Afinal, quem é A filha perdida do longa dirigido e roteirizado por Maggie Gyllenhaal (com base no livro homônimo de Elena Ferrante)? Não me parece que a história tenha sido feita para dar respostas cravadas, sobre nada aliás; o que há – e a partir daqui evoco elementos que spoileiam a trama a torto e a direito – são milhões de pedacitos de mais duma realidade feminina dentro do filme mesmo, fragmentos de inúmeras vivências da mulherice, várias delas atravessadas pela presença/ausência do relacionamento materno.

O mais natural é que relacionemos imediatamente o título a Elena – não a autora, mas a filhinha da personagem Nina (Dakota Johnson) que se perde da família na praia duma ilha grega, e é encontrada pela protagonista Leda (Olivia Colman), que passa ensolaradas férias no local (por sinal é quase esperado que em algum momento uma Helena se perca em plena Grécia, mas a tendência mítica é que retornem depois de certo furdunço). No ato de se chamar e catar a menina, somos apresentados à segunda possibilidade de filha perdida, já que o episódio evoca em Leda a busca de sua Bianca – também extraviada na praia, décadas antes –, e assim que a primeira guria pródiga volta aos braços da mãe se abre uma terceira possibilidade de interpretação: Elena reaparece, porém sua filha, a bonequinha de estimação, é "sequestrada" por Leda. Trata-se portanto duma tríade de perdas maternas no mesmo cenário, ou quase; Leda é a maternidade que resgata a dor do passado, Nina é a maternidade jovem que a vivencia no presente e Elena é, com grandes probabilidades, o ensaio das dores de maternidade futuras – uma vez que o ar mafiosérrimo da família em que nasceu faz supor que a garota, na realidade, pertence a um clã tradicional, controlador e machista no qual tornar-se esposa e mãe há de ser possivelmente compulsório.

Mas é em Leda que o buraco é mais embaixo. A aparentemente inexplicável ação de roubar a boneca duma criança que mostra ter ao brinquedo um apego doentio (e a longa insistência em não devolvê-la) amplia o foco: sim, talvez aquela seja também a filha perdida da protagonista, de tão semelhante à que ganhou da mãe em sua própria infância e perdeu na infância de sua filha literal – visto que a desafiadora Bianca barbarizou com a bonequinha de Leda (Jessie Buckley, na versão mais jovem) e esta, frustrada, acabou defenestrando o brinquedo, provavelmente pela inviabilidade de defenestrar a menina. Na destruição da primeira boneca, destruiu-se um pouco dela mesma, Leda-filha, e outra parte sua como mãe; quebrou-se um vínculo entre gerações, e eis mais duas filhas perdidas. Expurgar a bonequinha de Elena de sua sujeira, seu conteúdo nojento, suas roupas desarranjadas parece ser, para a personagem principal, um comprido resgate desse vínculo, com todas as lutas e contradições contidas no resgate e ilustradas pelo ir e vir com a boneca – guardá-la aqui e lá, perdê-la (hum), reencontrá-la, quase entregá-la, jogá-la fora, pegá-la de novo, abraçá-la, acalentá-la. O brinquedo é ao mesmo tempo um ícone de infância e de maternidade, duas situações que Leda tanto preza quanto rejeita: ama a lembrança de sua mãe, porém a coloca em último lugar na escala de quem poderia cuidar de suas filhas, despreza o fato de ela ter baixa escolaridade e se refere a suas origens como "àquele buraco de onde eu vim"; ama sinceramente suas filhas e as conhece nos detalhes, e no entanto considera terem sido maravilhosos os anos em que (por opção) esteve longe delas.

A filha perdida, por que não? também pode ser Nina em sua relação com Leda. Afinal é com Nina que a protagonista estabelece um elo de empatia desde o início de suas férias na praia, e há um nítido espelhamento da jovem e sobrecarregada mãe na mãe madura que parece ser a única a compreender seus dilemas; é para Nina que a viajante dá um presente, assim como dera à sua filha Bianca, e é por Nina que ela é ferida com o mesmo presente – o que remete ao episódio em que Bianca a "feriu" com o ataque à boneca, além de outro no qual a menina a agrediu fisicamente repetidas vezes. Curiosamente, de toda a família mafiosa cuja ameaça paira sobre Leda no período inteiro de sua viagem, apenas a criatura que de certo modo adotara chega a machucá-la efetivamente; uma sugestão, talvez, de que as verdadeiras feridas costumam vir dos mais próximos, o que Leda vivenciou passiva e ativamente em sua maternidade.

Qual a filha perdida planejada por Maggie Gyllenhaal e Elena Ferrante? Aquela que, entre todas as pistas espraiadas no enredo, cada um encontrar.

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