quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

O trabalho


No sagrado aniversário de libertação dos escravizados no mais famoso campo de concentração nazista, faço minha a observação de meu Fábio:

"Em Auschwitz e em outros campos de concentração, quem estivesse doente ou fosse fisicamente frágil acabava no crematório ou na câmara de gás.

Ganhavam sobrevida os mais fortes e saudáveis, aptos ao trabalho, capazes de ainda gerar lucro para o regime nazista.

A Alemanha não podia parar."

Precisamente, agudissimamente isso, sem tirar nem pôr a mesma lógica maldita, nojenta: a "lógica" que era levada a extremos inimagináveis pela perversidade de quem se tornou epítome do mal, mas que em linhas gerais já existia desde muito antes, e que em linhas gerais persevera muito depois – persevera HOJE, debaixo de nossos olhos domesticadamente habituados. O nazismo constituiu a manifestação torpe das torpes, a aberração de extrema-direita com que se vestiu o capitalismo naquele momento específico da história alemã; havia todo o discurso excludente, cruel, eugenista, arianocêntrico servindo de capa – e certamente não foi algo acessório ou periférico, foi a própria (ausência de) alma daquela década de horror –, porém o núcleo não era outro senão a má e velha lucromania, a péssima e idosa noção de que muitos devem fazer tudo até a morte para que poucos tenham tudo em vida. Por quê? Porque assim é; porque "o trabalho liberta", dizia a infame inscrição do campo de Auschwitz. Sim, liberta de ser considerado peça de descarte, liberta de uma morte imediata para outra mais à frente, liberta a chuva de barulhinhos na caixa registradora dos patrões: esse o ideal que, décadas mais tarde, ainda posa e pesa sorrindo sobre os ombros que esmaga.

Caiu oficialmente o regime nazista, que o diabo o conserve nas masmorras da História; mas nem por isso caiu a convicção de que humanos só prestam para alguma coisa enquanto fazem a economia girar, de que pessoas deveriam levantar as mãos pros céus de ter QUALQUER trabalho precário e humilhante em vez de morrerem de fome, de que é melhor contar com menos (ou nenhuns) direitos a fim de se conservar a atividade que tem muita gente querendo. Caiu o terror máximo, o terror icônico, e no entanto permanece a glorificação duma economia abstrata em detrimento de seres concretos; permanece a boi-de-piranhização da sociedade, a martirização de braços obrigados a não zelar pelo próprio bem-estar, a não parar nunca, nunca. Caiu a ideologia da crueldade escancarada, explícita, porém ficou a essência da perversidade que sempre aprende a camuflar-se pela própria sobrevivência: a perversidade empreendedorista que manda trabalhar enquanto eles dormem, que incentiva a se desvencilhar das "amarras" da CLT, que prega o masoquismo de se estar em atividade acompanhado de "um tubarão no tanque", que torna o funcionário paranoico com relação a tirar férias ou desligar o celular, que ensina a sacrificar a segurança e ignorar recomendações científicas em nome de um lucro que jamais chegará às pecinhas da engrenagem – se pecinhas quebram ou pifam, são trocadas e economia que segue. O nazismo pode ter sido enxotado sob a forma repulsiva de nazismo, mas o germe do mesmo Alien que morava em sua barriga estruturou a sociedade em cuja barriga moramos; é o mesmo vírus mutante, persuasivo, que nos faz triturar os verdadeiros produtores da riqueza e glorificar os empresários açougueiros, exploradores, vendedores de números, executivos de abstrações e executores de p#%$@ nenhuma.

O nazismo se foi (we wish), o capitalismo parasita que o sustentava continua. Que haja o dia em que a praga desigualitária seja finalmente esmigalhada, e em que todos os portões paulatinamente abertos esqueçam como se fechar.

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