terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

A experiência do lago


Temos hoje o bicentenário redondinho da morte de John Keats, (considerado o) último dos poetas românticos ingleses e, dentre eles, aquele que morreu mais jovem, com tenros 25 anitos (um matusalém perto de vários meninos românticos nossos, é verdade: meu amado Casimiro foi-se com 21, Álvares de Azevedo com 20, Castro Alves com 24. PÉSSIMO gosto esse da época, de La Belle Dame sans Merci ir levando consigo tantas crianças). A obra de Keats só começou a ser publicada quatro anos antes de o poeta-menino encantar-se; porém, dos versos de abertura aos de encerramento, seu talento evoluiu de maneira febril, talvez literalmente. Gosto de uma sua citação – acredito que colhida em material de correspondência – que diz, pouco mais ou menos: "Ainda não sei fazer [ou trabalhar] um poema. Um poema precisa de compreensão por meio dos sentidos. O objetivo de mergulhar em um lago não é nadar imediatamente até a margem, mas estar no lago, para se deleitar com a sensação da água. Você não trabalha o lago, é uma experiência além do pensamento. A poesia acalma e encoraja a alma a aceitar o mistério".

Apesar de literariamente me esbaldar em lagos românticos (e quase que exclusivamente neles) desde sempre, sou inclinada a ver a questão poética muito como o eu lírico de Pessoa, atribuindo mais transpiração e cérebro do que arrebatamento à reconstrução artística das dores que o poeta não tem. Mas também não creio na vibe racional-bossa-nova operando de maneira unívoca, em especial numa mente fogosa como a do pequeno John – claramente uma subjetividade rock and roll, por mais que, aparentemente, não se considerasse rock and roll o bastante, ou exatamente por causa disso. Concordo com o jovem Keats no sentimento da poesia como uma experiência de imersão, como uma espécie particular de inebriamento e gozo, em que é preciso haver tamanha sedução de linguagem que a entrega chegue ao nível mencionado pelo autor: um abraço alumbrado e relax na beleza mesma, um efeito de feitiço superior ao julgamento e dele desvinculado, tal qual o que se acha numa catarse musical ou num instante de paixão profunda por uma tela – independentemente de se compreender a letra da canção ou a intenção do pintor. A arte já valeria só pela "fruição do lago", toda sensual, sensorial, encantatória? Completamente. Mas é por acaso possível, sobretudo no domínio das palavras, criar para outrem a experiência do lago estando-se todo imerso no mesmo lago? Que me perdoem os dadaístas: isso é que não.

Autor que pretenda trabalhar a poesia para ser lago e, ao mesmo tempo, permaneça no estado alterado de consciência que quer provocar parece equivalente a, digamos, um imagineer da Disney que só queira se divertir nos brinquedos em vez de criá-los. Claro que o imagineer é o primeiro a girar na montanha-russa ou voar no simulador de asa-delta que sua mente concebe, mas isso somente depois de parir o concebido; antes da entrega, da catarse, do voo, há um esforço bárbaro de engenharia, ajustes, ajustes, engenharia; há muito detalhe a ser minuciosamente confeccionado, muita estrutura a ser pensada, muito perrengue a ser vencido com a mais calculada das criatividades. Assim o poeta, que, mesmo incapaz de criar o lago – como o pintor não cria a ponte, a mulher, a montanha, o cachimbo –, é capaz de reproduzi-lo, ladrilhando de palavras sua proposta artística para nela piscinar o leitor. Acontece paixão, acontece mistério e, sim, um trabalho árduo de bastidores, a fim de que a audiência tenha uma aproximada noção do que o escritor deveras sente.

(E vire ela própria a poesia, não mais que de repente.)

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