quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Tudo que aceitamos sobre nós

Se viva, a escritora e ativista Audre Lorde completaria hoje 87 anos. Entendo celebrá-los compartilhando uma sua frase linda, linda e empoderadora como o quê: "Nada que eu aceite sobre mim pode ser usado contra mim para me diminuir". Acordemos com um barulho desses.

Evidentemente Audre não está "liberando", com seu dito, a ação de bullyingadores e agressores tais, sob algum falso pretexto de que, se a vítima é desconstruidona das ideias, não se sentirá atingida. Seria uma interpretação absurda, que atribuiria a efetividade do xingamento à falta de autoestima dessa vítima e não à crueldade do xingador mesmo (algo como a lógica de encarar a pessoa estuprada como responsável por seu próprio estupro). Uma leitura tão mais nonsense quanto mais nonsense é a premissa da qual ela parte – a de que um agressor só se baseia em características "reais" do agredido (dados como a origem, a cor da pele, a orientação sexual etc.) para atacá-lo, negativando o que não é negativo, mas não INVENTA do zero alguma injúria verdadeiramente escabrosa. É assim que funciona? Todos sabemos que não é assim que funciona, não vigora nada parecido com uma "ética do insulto"; gente baixa o suficiente para ultrajar alguém por puro ódio não se constrange de criar fake news as mais disparatadas e sórdidas, a respeito das quais inexiste resiliência possível. Uma coisa, por exemplo, é ser bruxa e não se atormentar quando um infeliz tenta fazer disso uma ofensa; outríssima coisa é ser bruxa e ver que o infeliz anda espalhando que seus "feitiços" prejudicam famílias, animais, crianças. Uma coisa é lidar com criaturas ociosas e recalcadas; outríssima coisa é lidar com criminosos.

Feita a ressalva, vamos nos ater à grandeza da frase da escritora – um elogio ao fortalecimento do ego contra idiotices circundantes. Se a provocação envolve o emprego pejorativo de um nosso componente real, cabe muitíssimo aí, como antídoto, a autoaceitação mencionada por Lorde: me abraço como negro, como gay, como trans, como portador de tal ou tal sotaque dessa ou daquela região; abraço meu peso, minha altura, minhas curvas, minhas rugas, meus sinais, minhas presenças e ausências, minhas potências e fragilidades; abraço minha religião, minha história, meu trajeto, meu trabalho, meus ascendentes e descendentes, minhas incapacidades e vocações; e, em me abraçando afetuosamente com tudo que tenho e sou, me dialogo para dentro, me dou a chance de desabafar com honestidade, para mim, sobre o que me incomoda porque me incomoda e sobre o que me "incomoda" apenas porque parece incomodar os outros, ou dar-lhes pretexto de descarregar para meu lado seus próprios bloqueios. Não sendo viável mastigar e digerir tantas questões em solidão, me digo que tudo bem e me conduzo carinhosamente à terapia que melhor encaixe em minhas necessidades, até que eu e mim estejamos em suficiente paz e só levantemos ombros indiferentes a quem quer que se dedique a estorvar nossa relação.

NÃO se trata, diga-se, de passar paninho para nossos defeitos e não nos deixar afetar por nenhuma crítica (que seja exatamente isso, CRÍTICA, não ataque). De jeito nenhum; o ego legitimamente vitaminado é menos, e não mais narcisista, como um organismo que fica robusto de massa magra em vez de gordura. Narcisismo é colete à prova de balas vestido pelo eu, porém de tão péssima qualidade que qualquer cara feia, qualquer pisão no pé o perfura; enquanto a autoestima bem nutrida, bem moldada, é vestimenta confiável que pode até sentir o impacto de influências negativas, mas não se deixa avariar e muito menos destruir. Faz-se emergencial, todos os dias, alimentar esse amor de si – que, como todos os amores dignos do nome, não é cego nos percalços nem exageradamente complacente ou indulgente, sem com isso ser vulnerável às pressões externas tampouco. Amor é coisa de resolver entre um amado e outro, tendo no máximo um terapeuta no meio.

Nós & nós – infinitos enquanto maduros.

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