segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Com filtro


Não sei se concordo inteiramente com o dito de um aniversariante do dia, o gato austríaco oitocentista Hugo von Hoffmannsthal, que hoje sopraria sua 147ª velita se a expectativa de vida humana não fosse ainda tão insatisfatória. Embora talvez não concorde inteiramente, reproduzo o trecho – por motivos de bonito demais da conta: "Onde é que se pode encontrar o teu próprio eu? Sempre no mais profundo encantamento que experimentaste".

É bonito, eu avisei que era bonito; mas é todinhamente verdadeiro? não sei; quisera que fosse. Provavelmente facilitaria a compreensão do humano, como agente e como paciente, se pudéssemos relacionar sem hesitação a sua essência mais fina ao seu deslumbramento mais sincero. A ideia é eminentemente romântica e nos "reduziria" (sem mágoas, por ser a ideia tão eminentemente romântica) à nossa porção sentimental, aquela que escapa ao prático e raciocinado para se perder de amor num filme, num lustre, num quadro, num poema, numa cena, numa série, num livro, nuns olhos. Quem não acha apaixonantíssimo ver ou imaginar alguém em flagrante delícia, estúpido de assombro na frente dum pôr do sol, entornado em lágrimas pela excelência duma ópera, gastronomicamente arriado de quatro pneus às primeiras garfadas de seu Prato dos Pratos? Não nego seja um jeito fofo de captar as gentes, tomá-las sobretudo pelo que são sem defesas, pelo que são quando algo involuntariamente as arrebata; eu, porém, a despeito da simpatia pelo conceito acho-o incompleto ainda, uma vez que não inclui nesse eu genuíno a exata prerrogativa humana, que é a de ir além do sensorial, do imediato, do (quase) irrefletido. Nosso encantamento não é o mesmo dum qualquer outro animal, claro – há em nós um componente de poesia não reproduzível em nenhuma espécie –, mas não basta para nos definir tampouco: somos mais do que nossas impressões primárias, do que nossas mais legítimas respostas de atração, do que nossos impulsos de fascínio. Somos mais do que uma versão sem filtro de nós.

Ser humano implica ser TAMBÉM o filtro. Por mais que consideremos, em defesa da fala de Hoffmannsthal, que profundos encantamentos há de todos os tipos, e que um serial killer em potencial pode muito bem experimentar seu mais profundo encantamento ante cenas ficcionais de vítimas aterrorizadas (o que em tese provaria: ele é um serial killer, vê? pode nunca ter machucado ninguém, mas seu ÂMAGO é de serial killer!), temos de considerar igualmente o fator escolha, o fator efetivação. Se o rapaz aí do exemplo, embora arroubado e perseguido por imagens violentas, sabe que violência é errado e prefere se açoitar a ceder a suas fantasias de monstro, quem terá o direito de descrevê-lo como assassino? Assim como devemos ponderar o contrário, possivelmente mais comum: se um ex-soldado leal da SS soluçou de emoção ao ver a amada vestida de noiva, se caiu em prantos ao acompanhar o nascimento dos filhos, se sentiu todos os pelos se eriçarem ao adentrar pela primeira vez o Magic Kingdom, se se comoveu até os ossos em Bambi, se sempre olhou um Monet com o mais entusiasmado alumbramento – quem terá o direito de NÃO descrevê-lo como assassino? Se os encantamentos e as ações estão em perfeito desacordo nesses dois homens extremos, mas possíveis, qual de suas faces é seu crachá d'alma real oficial? Vi que você ergueu as sobrancelhas ou ombros; toca aqui; é assim mesmo, não sabemos, ninguém sabe, podemos no máximo fazer um workshop de perfis psicológicos no FBI e sair de lá cientes da chance de esbarrar com uma exceção no Starbucks mais próximo.

Só sei ou acredito que: o imo do imo do imo de nosso id infantil, louco, selvagem não está autorizado a responder sozinho pelo ego resultante, não equivale mais a nós do que o superego que contratamos para dirigi-lo; nem nosso total enamoramento pela beleza nos exime dum Tribunal de Haia, caso cometamos as maiores atrocidades meramente "cumprindo ordens", nem nossas propensões malucas nos condenam de véspera, caso as mantenhamos sob a mais absoluta focinheira de Hannibal. Não é cada ingrediente – é a mistura, é a temperatura, é o tempo, são as doses, são os gestos, são as formas, é o forno, é a soma. Somos todo o processo, todo o contexto, toda a logística, e nos cozinhamos e nos cozinhamos e nos cozinhamos até a bagunça de nossas micro-ondas ser interrompida pelo apito final.

E então a posteridade se agarra à miragem de decifrar-nos – enquanto nos devora.

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