quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Infelizes


Há dias compartilhei no Face uma tirinha profundamente brilhante do cartunista carioca Daniel Lafayette, mais conhecido como Lafa; seu personagem azul expressava em três quadrinhos a envergadura filosófica duma dissertação: "Eu não sou infeliz. A gente que não se identifica com o que vem se tornando este país fica triste, é verdade. Mas infeliz mesmo é quem se identifica". Ui.

Lafa e seu blue alter eguinho estão cobertíssimos de razão; apesar de andarmos diariamente tristes, chocados, raivosos, consternados, até desesperados com a nuvem de horror invocada sobre nós pelos Comensais-de-Morte-em-chefe, infelizes não ficamos nem somos (não trato aqui, evidentemente, das situações de depressão e afins gatilhadas pela tensão ao redor, questões de ordem médica), porque não pertencemos à nuvem – somos envolvidos por ela, jamais confundidos com ela. A hediondez daqueles uns nos ataca, nos revolta, nos afeta, porém nos permanece exterior, não nos penetra nem contamina, não nos tenta, não nos substitui em nós: podemos até de alguma forma ser mortos pela atmosfera que nos sufoca, não possuídos. Para haver infelicidade propriamente dita, precisaria haver mutação; seria necessário que nossa essência fosse tomada da burrice e do recalque venenoso que leva ao preconceito, seria crucial que uma desempatia amargosa nos afastasse de todo o bem a ser produzido, seria indispensável que uma ojeriza congelante aos seres do mundo e uma urgência terrível de lhes fazer mal nos atormentasse. Para sermos autenticamente infelizes precisaríamos, anfã, nos transformar em tudo que mais desprezamos.

Infelizes e mal-aventurados são os frustrados afetivos que carecem transferir seu erotismo para pistolas, revólveres, fuzis; infelizes são os ocos emocionais que carecem direcionar a libido para a morte, já que lhes falta o talento de seduzir a vida. Infelizes os que sentem apelo de matar recreativamente um animal inocentíssimo que nem de refeição servirá, apenas de troféu mórbido para uma vaidade cretina. Infelizes as cabeças e corpos tão desarranjados com a própria sexualidade que buscam descarrego atacando a plenitude da sexualidade alheia. Infelizes os de universo estreito não por circunstância, mas por escolha, que guardam ranço da arte, da ciência, da filosofia e de tudo quanto escapa indiferentemente à sua pequeneza de opinião. Infelizes, mil e mais mil vezes infelizes os que apoiam sua autoestima doente na identificação com idiotas cuja mesa nem compartilharíamos num churrasco – idiotas ressentidos de igualdades, justiças, amores, belezas que eles não conseguem reproduzir ou atingir, e em que só veem satisfação como quem baba diante de vítimas a serem destruídas.

Infelicidade vem sim duma fartura de origens (cada um é infeliz à sua maneira, mais ou menos diria Tolstói), mas não há que duvidar: nenhuma tão eficiente quanto aquela composta dos cacos de si que cada qual põe sobre o próprio muro, a fim de massacrar tentativas de entrada e encarcerar ainda mais a não-saída. Embora gêneses alternativas – involuntárias – de infelicidade tenham também alguma chance de dar a última palavra, desamar por opção é, definitivamente, a fonte mais segura.

Nenhum comentário: