terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Caminho de neve

Às vezes gosto de empreitar enredos ficcionais a respeito de pinturas das quais desconhecemos o contexto, como uma espécie de exercício reverso em que se ilustra com palavras a imagem. E por que não homenagear por tabela um aniversariante do dia – o fazedor de 180 aninhos e pintor impressionista Armand Guillaumin? Amigo de Cézanne, Pissarro e Van Gogh, porém jamais tão reconhecido quanto eles (no caso do querido Vincent, estou naturalmente falando do renome póstumo), Guillaumin teve a extraordinária sorte de, aos 50 anitos, ganhar 100 mil francos na loteria, o que lhe permitiu a felicidade de largar o emprego formal para mergulhar exclusivamente na arte. Não posso dizer que não bateu invejinha.

Já não invejo a trajetória da pequena personagem de Hollow in the snow, tela gerada pelo artista em 1869 e acima reproduzida. Para mim, é a jovem Vivienne Morin que vai pelo caminho, pontuando de vermelho a paisagem azul (esse vermelho específico é o do lenço em sua cabeça – seu melhor lenço –, embora os cabelos não destoem tanto do calor do tecido e sejam de um belo castanho arruivado. Ela não confessaria nunca que se orgulha docemente desses cabelos, desse veludo exuberante que considera sua única beleza. Mentira, não é de nenhuma forma a única; apesar do rosto já excessivamente cansado para meros 27 anos, ou até em parte pelo cansaço que os adoça e melancoliza, que olhos, que olhos! tem a moça, grandes e xarás de cor da amada trança. Que pena não os podermos ver agora). Para onde vai Vivienne, solitária como a árvore que já mal aguenta avistar todos os dias? Vai do trabalho, em casa da família Badeaux, para a casita onde moram seu pai Donatien e seu irmão Jérémy. Nossa heroína exausta dorme na residência dos patrões; no entanto, como o velho Donatien está em rápido declínio de doença, e é por todos os ângulos pesado demais para os magros 16 anos de Jérémy, ela atravessa diariamente 5 quilômetros de ida e 5 de volta para dar força e direcionamento ao caçula.

Vivienne se sente exatamente como essa árvore: débil e insuficiente no meio de um estradão ora quente de rachar os ossos, ora congelante e monótono de anil, como recentemente tem estado (Vivienne gosta dos tons de outono, que ela mesma representa; odeia frio e odeia azul. Ninguém sabe que ela odeia azul, tanto que sua patroa lhe deu o vestido usado com que ela ora enfrenta o trajeto de neve. Por isso o lenço vermelho: uma rebeldia muda). As duas, a mulher e a árvore, são débeis e insuficientes, mas são as únicas disponíveis em suas categorias, e resistem às neves e aos quilômetros – no que toca à moça, também aos desgostos fundos, fundos: Jérémy é um bon garçon sem dúvida, e ainda assim incapaz de lidar com o père Morin, porque impaciente, inseguro, infantil; e Donatien é daquelas presenças amarguradas e tóxicas que drenam o ambiente, drenam as vidas, as almas. Andar os 5 mil e tantos metros não é apenas meio de transporte, é meio de adequação mental; Vivienne não se incomoda de rumar, mas não quer chegar, chega somente porque tem o percurso para ajeitar as gavetas íntimas – e somente retorna ao serviço porque tem o mesmo percurso para regrudar os cacos.

Vivienne ama? Ela sinceramente não sabe; reconhece que Gilles, um seu colega de emprego na casa dos Badeaux, lhe dirige atenções interessadíssimas – porém como avaliar se são amores? Nossa protagonista de tela perdeu a mãe aos 11 anos, não se lembra de ter presenciado nenhuma ternura entre os pais, labuta desde os 15 numa família em que só percebe uma educada indiferença; lê pouco, nunca leu um romance, nunca lhe contaram histórias arrebatadas; que escola de afeto frequentou? Pelo bocadinho que captou da vida, desconfia que sim, aquilo com Gilles pode ser amor, pelo menos parece. Seu pânico de estimação: afundar mais e mais em seu caminho de inverno, caso se una a Gilles e o incorpore ao conjunto de homens que a usa, manobra, consome, esgota, respira.

Lamento comovidamente não ter condições de saber se Guillaumin aprovaria minha versão para seu Hollow in the snow (embora creia com honestidade que a heroína ficcionalizada combina macio com o título). Só me deixem aqui com um pensamentozinho de consolo: que, se o querido impressionista pintasse o casamento de Gilles e Vivienne, não a faria enfeitar-se com (mais) nada que fosse azul.

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