quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Quebradores de pedra


Vocês sabem, tenho certeza, que a prefeitura de São Paulo encheu de pedras pontudas o espaço que fica sob um viaduto no Tatuapé, a fim de que pessoas em situação de rua não pudessem ali se instalar. Sabem também que ontem o padre Julio Lancellotti – honrador de sua batina, de seu modelo de vida e até de seu sobrenome cavaleiresco, digno dum paladino dos pequenos – quebrou a marretadas várias dessas pedras, num movimento de justíssima indignação. Não que eu precisasse de qualquer novo elemento para admirar vivamente o padre Julio, cujo trabalho com os sem-teto paulistanos chama NO MÍNIMO um Nobel; vê-lo meter desobediência civil em forma de marreta para cima das crueldades do poder, no entanto, acabou de me dar suficientes provas e convicções de que estamos contemporâneos dum futuro canonizado (sorte gigante que procura compensar o fato de sermos também contemporâneos daquele-outro-lá). Porque gente já representada nos altares nunca foi gente etérea, ectoplasmática e flutuante, presépio-avaquinhada, alienada e obediente no pior sentido do termo – ao contrário: estiveram todos sempre envolvidíssimos nas tretas de sua época, foram soldados, prisioneiros, maridos, esposas, mães, surfistas, médicos, guerreiras, missionários, professoras; desacomodaram-se, peitaram governos (alguns não são mártires à toa), partiram ao encontro de doentes e desassistidos nos fins dos confins, mudaram práticas, humanizaram parâmetros, encheram os pacová dos ricaços, combateram escravidões. Tiveram constantemente suas cruzes. Muitos morreram nelas.

Em comum, toda essa galera precursora do padre Julio carregava a disposição para fazer o que precisava ser feito, no matter what; podia ser gente dulcíssima, de gestos normalmente mansos e fala delicada (embora direta), mas não significa de modo algum que a doçura inteira do universo os impedisse de intransigir – intransigir decididamente com desmandos e injustiças, sem negociações. Se volta e meia careciam dar uma infringida básica na lei, paciência: primeiro, é fácil enquadrar-se perfeitamente nas regras quando você as patrocina ou faz, o que não torna nenhuma alma ilibada portanto; segundo, conforme ocasionalmente se recorda com grande propriedade, atos como acobertar judeus na Alemanha nazista, apoiar a luta negra na África do Sul apartháidica ou facilitar a fuga de pessoas escravizadas em nosso passado colonial já foram um escândalo de ilicitude, um absurdo punível com prisão ou morte sumária. Estando pois a vida, a dignidade, a liberdade, a saúde, a segurança, a integridade do ser humano ameaçadas, a regra (que importa) é clara, dane-se o resto, o resto não é referência; nada que fuja ao eixo do acolhimento e da compaixão dá em órbita que preste.

Padre Julio é uma das maiores encarnações atuais da compaixão e do acolhimento. Sem dúvida sabe que se "arrisca" legalmente ao destruir uma parte das pedras espetadas na vivência de sua querida população de rua – tanto quanto tem se arriscado fisicamente ao derrubar o máximo de pedras figuradas, haja vista a quantidade de intimidações que recebe no exercício de sua pastoral. Perigos suspensos no ar, entretanto, não o detêm e não costumam mesmo deter os apaixonados da justiça, os enamorados do amor, em geral impulsionados dentro de sua causa pela adrenalina eterna; não existe traço significativo de medo no gráfico dum organismo tomado pela santa revolta. Ninguém defende, é certo, que seja rima ou solução ter uma cidade capaz de oferecer algum abrigo unicamente sob seus viadutos – mas é muitíssimo mais estarrecedor e inaceitável que filhos da mesma cidade (de sangue ou adoção, tanto faz) se vejam tão explicitamente desacolhidos ATÉ debaixo dos viadutos, como se a maior e mais rica metrópole do continente lhes dissesse: aqui nem mesmo o que é público pertence a vocês, porque vocês, proscritos do sistema que eu alimento e que me alimenta, sequer pertencem ao público. Não mover uma pluminha para prover ao teto e, simultaneamente, tirar até a migalha de teto, até o arremedo de dignidade, até o consolo provisório, o arranjo paliativo – tirar a rua, A RUA! A-RU-A, espaço maior do coletivo, símbolo maior do que é de todos –, quem com um mililitro de sangue nas veias pode não estourar em rebelião e marretada? Jesus seria o primeiro a sentar o martelo nessa aberração urbanística, xô-vendilhões-do-templo style.

Para quem alega pertencer à turma dEle, o papo é reto: como ingresso, urge ser um dos quebradores de pedra, nunca um de seus semeadores. Nenhuma pedra pode se mostrar tão angular da Igreja quanto o ímpeto de remover brutalidades do meio do caminho.

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