quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

O trem errado

Há 115 anos nascia Dietrich Bonhoeffer, teólogo e pastor luterano que fez parte da resistência ao nazismo – estando, inclusive, entre os fundadores duma ala da igreja evangélica claramente avessa às desgraceiras de Hitler. Gosto particularmente de uma frase do pastor que encaixa melhor do que deveria no Brasil atual: "Se você tomar o trem errado, de nada adiantará andar pelo corredor no sentido contrário". Fica o recadinho, em toda a glória de sua crueza, para os que acreditam em pensamento-positivo-gratiluz-unicórnico capaz de compensar o incompensável, corrigir o incorrigível: just don't. O horror quando se põe em marcha não recua nunca, não se atenua, não dá ré nos próprios trilhos; só desacelera se o maquinista assim decide ou é obrigado a, por forças maiores. A não ser que sejamos as forças maiores e freemos a joça, lá vai ela em velocidade máxima rumo ao despenhadeiro, perfeitamente indiferente ao nosso desespero perplexo que corre de vagão em vagão.

Se tchibumos de corpo e alma numa realidade alternativa em que professores são "perigosos" e "doutrinadores", se subimos a bordo duma política que senta porrada e bala em educadores manifestantes, se engordamos com nosso apoio um sistema que estrangula as verbas da educação, de nada adianta mandarmos bombom em 15 de outubro ou postarmos vídeo xarope serenateando "Ao mestre, com carinho". Se endossamos com força um regime de austeridade e nos posicionamos sistematicamente ao lado de interesses grande-empresariais, de (quase) nada adianta doarmos meia dúzia de cestas básicas regadas a selfie e hashtag contra o avanço da pobreza. Se tietamos com a voz ou o silêncio um "governo" empenhadíssimo em enfiar uma arma na mão de cada brasileiro, de nada adianta compartilharmos lutos compungidos por qualquer inocente morto de tiro extraviado. Se votamos eleição sim, eleição siiiim em candidatos apaixonadamente fiéis ao culto do mercado, de nada adianta batermos panela por mudanças estruturais nas teias partidária e econômica. Se somos o tipo de pessoa que se cola à porta dum hospital para atormentar uma criança grávida de um abusador nojento, de nada adianta botar olhinho chorando na foto de perfil quando uma hecatombe faz centenas de jovens vítimas. Se andamos voluntária e consistentemente amarrados numa lógica de morte, desumanidade, desigualdade, exploração, indiferença, não há coreografia no planeta que nos torne convincentes como integrantes do lado oposto; não há simulado que abafe o verídico.

O maravilhoso poder de estar no trem certo consiste na confiança sossegada em sua trajetória: atravesse ele as sinistrices que atravessar, nosso ímpeto de saltar é nenhum, já que a certeza da estação final dá ao resto a leveza possível. Podem bater receios, apreensões, não pavores. Não desbrios. Não aviltamentos. O cidadão do trem errado, sim, está permanentemente sujeito à vergonha sem sequer contar com a convicção íntima que alivia o desconforto – assim como (se me permitem o rude da comparação) o paciente que embarca num tratamento insano e doloroso sem a real esperança de ficar curado. O que mantém o cidadão do trem errado em sua caminhada incômoda e infeliz dentro do comboio que, ele sabe, cedo ou tarde vai se atirar do precipício? Teimosia, em geral; autoilusão orgulhosa, besta, do tipo que morre mas não destrinca os dentes; febre de ser destruído pelo engano antes de confessá-lo; histeria, a mais autêntica e doente histeria. Vaidade das vaidades, tudo é vaidade – já ouviram a máxima bíblica? pois então. É intensa demais, poderosa demais a vaidade do povo ruim de trilho, que mui frequentemente prefere a covardia duma tragédia rápida à integridade da lenta mudança.

Temos tido destes em excesso: os que se projetam de ferro e só deixam rastro de fumaça.

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