quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Os entretantos


Dia do bem-humorado dramaturgo francês Bernard le Bovier de Fontenelle: módicos 364 aninhos – dos quais, espantosamente, o autor viveu cem quase redondos (falecendo apenas um mês antes de completá-los). CEM ANOS, em plenos séculos XVII-XVIII, quando uma pessoa com a metade disso já era considerada idosa! Efeito do consumo de morangos, segundo Fontenelle, eterno apaixonado do garfo e do copo. Aos 92, o dramaturgo teve seu joie de vivre comparado por um observador ao de um jovem de 22; e já no finzito de sua última década teria dito a uma bela mulher que conhecera: "Ah, senhora, se eu tivesse oitenta de novo!"

Ser agora apresentada a essa figura pitoresquíssima combina à perfeição com uma frase sua – "É verdade que não podemos encontrar a pedra filosofal, mas é bom que ela seja procurada; procurando-a, descobrem-se muitos bons segredos que se não procuravam". Na condição de perseguidora de assuntos, eu não conseguiria concordar mais ou assinar embaixo com entusiasmo maior; sou exatinhamente dessa vibe. Confesso, aliás, que tendo mesmo a preferir os segredos não procurados, os que se oferecem alegres pelo meio do caminho, as surpresas interessantes: lojinhas insólitas não calculadas no roteiro da viagem, notícias que quebram a banca das expectativas, peças de brechó que de repente assustam de tão perfeitas, filmes que pegamos passando numa tarde de segunda e se tornam favoritos, autores descobertos em sebos que alargam o repertório. A vantagem óbvia é que, não havendo planos para um esbarrão com o tesouro, não há também ocasião de desapontamento; tudo que chega é lucro total, limpão de impostos, alegria líquida. Uma trip sem a tensão de arrumar bagagem.

Ao focar unicamente na pedra filosofal – a paixão absoluta, a festa das festas, o restaurante dos restaurantes –, entramos na aventura com roupa de gala, com as vontades trajadas de longo ou de smoking para o Grande Momento, e é então inevitável: a manga, a gravata, o sapato apertam, a barra do vestido arrasta e amarfanha e atrapalha, a procura fica duas vezes mais exaustiva porque o espírito errou no dress code e só visa ao finalmente em vez de se divertir com os entretantos. Nada brilha, a não ser a imaginária meta – lógica bovarista que não costuma acabar em cenário florido, de tão febrilmente que o buscador se apega à imagem do cenário florido; febre é um dos maiores sintomas de desarranjo, todos sabem. Quem viu A noviça rebelde (beijo, querido Christopher Plummer; que você esteja no maior campo de edelweiss do universo) também sabe perfeitamente a importância de ter roupas de brincar, aquelas com as quais se corre, se dança, se canta, se respira, se sobe em árvore, se pega fruta no pé. Não existe o Grande Momento, não existe o gozo da meta alcançada, não existe a excelência da felicidade SEM o encantamento por todo o processo, por todo o percurso, por todos os detalhes, por todas as chances de beleza, por todas as experiências espalhadas: a felicidade É a construção, É o processo. A vida, guria que não cessa de acontecências e travessuras, não fica parada batendo continências, fica entoando seus dó-ré-mis em cantos inesperados, tocando violino no metrô, aparecendo com sugestões para uma live MARA, apresentando amigos eternos no Facebook, flechando amores definitivos no ponto de ônibus – não sossega, a criança. O que espera de nós? que a acompanhemos sempre, que lhe sigamos o ritmo e lhe demos a mão na ciranda, em vez de sentarmos suspirosos num banquinho enquanto ela brinca e nós perdemos o timing de vê-la crescer.

Pedras filosofais são bons pretextos, desde que mantenhamos lúcida a noção de que, no caminho, nem tudo que não reluz deixa de ser ouro.

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