sábado, 6 de fevereiro de 2021

Café com sorvete


Nos Estados Unidos, hoje – primeiro sábado de fevereiro – é o Ice Cream for Breakfast Day, bobagem que condiz perfeitamente com a tradição americana de datas malucas (ontem foi, por exemplo, Dia do Chiclete e Dia de Trabalhar Pelado, entre outras doidices aleatórias). Quero crer, para compreender com algum sentido e poesia a celebração estapafúrdia, que não se trata simples e planamente de consumir sorvete no café da manhã, e sim de fazer uma pequena insurreição particular desde cedito, uma subversão simbólica: se acordo às 7h16 com apetite doce e geladinho, em vez de salgado e quente, por que cataratas não pode? quem me impede? qual legislação internacional me força a seguir as mesmas deixas e marcações de anteontem, o mesmo script? Pode, e eu considero inclusive saudável que vez por outra se faça esse exercício de excentricidade ligeira – nada insano, naturalmente, mas minirrebelde o bastante para atiçar as usininhas da criatividade, que bebem no insólito. A disciplina estrutura a construção, o desvio a decora; o hábito levanta a casa, as variantes derramam cor na parede.

Ainda que se seja regradíssimo, ou bem exatamente por essa razão, vale estender ocasionalmente a rotina em banho de sol, para fixar a vitamina D e fortalecer-lhe os ossos. Vale tomar uns sorvetes clandestinos no café da manhã: interromper a programação de trabalho para assistir a um curta no YouTube, passar meia hora no mar antes do ônibus, respirar meia hora de beijo antes da aula, comprar flores naturais para a mesa dum almoço de quarta-feira, atacar um mil-folhas depois do almoço de quarta-feira, fugir para o cinema depois do mil-folhas de quarta-feira, fugir para um hotel de serra para de lá concluir o projeto, ir para o consultório de melissa rosa-choque (fluorescente), vestir a lingerie mais cara sob o uniforme de escritório, ouvir um musical inteiro da Broadway no engarrafamento, permitir guerra de travesseiro no quarto dos picuchos para festejar o dez em Geografia, trocar a média de sempre por um affogato, escrever um monólogo sobre o coração para desafogá-lo – e apresentar num sarau no qual se entrou pura e candidamente porque a porta estava aberta.

Grandes pirações, como carregar uma mudança completa de um país para o outro ou decidir ter um filho, não comportam improviso mental; são estradas aonde se vai dar pensadamente, organizadamente, de preferência com o nível planilha do Excel de nerdice e a maior exatidão a que se possa chegar em termos de roteiro. É sistema que não garante sucesso, porém conforta, palpabiliza, direciona, embora também venha a sufocar com certa frequência a naturalidade, a maciez dos dias. Para impedir o ressecamento das almas sensatas é que servem os desatinos mirins, as baby aventuras, os desparâmetros que fazem a criatura se botar pelo ladrão: a vida é frágil demais para virar cronômetro, carece de um ou dois descompassos a fim de equilibrar-se, eliminar a tensão de seus excessos. Substituir o desjejum pelo sorvete (não sempre, que o objetivo não é embalofar, acabar com a garganta nem criar novos clichês) é a metonímia do buraquinho transgressor que desincha o cotidiano; é o maneirar do ritmo de Fórmula 1 para descer de carrinho de rolimã a ladeira.

Loucos somos sempre – alguns por exagero de sisudez. A estes, recomendo pegar um momento ou outro nos braços e tirar uma casquinha.

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