terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Puxando fios


Ao menos de acordo com nosso calendário gregoriano (na Rússia de sua época, seguia-se o juliano), completam-se hoje 140 anos de morte do fabuloso Fiódor Dostoiévski, falecido com irrisórios 59 após uma hemorragia pulmonar associada a enfisema. Para tão curta vida – talvez não tão curta dentro dos padrões oitocentistas –, tão longa obra; não preciso dizê-lo, nem seria viável fazer aqui elogio bastante. Vou me ater à insignificância do texto (do meu, claro) e destacar unicamente, por ora, uma frase dostoiévska que eu poderia adotar carinhosamente como lema lugarzito, tanto nela creio: "Não há assunto tão velho que não possa ser dito algo de novo sobre ele". Quando me acho muito e muito repetitiva, e sou, à força de rabiscar aqui alguma coisa todo dia, peço vênia e consolo à fala de Dostô, peço o respiro de imaginar que mesmo nas reiterações e repetições e reúsos e reciclagens haverá algo de fresco, algo de minimamente inédito. Uma expressão, um ângulo, uma ideiazinha que seja – mas nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia; nenhum tema passa, nenhum tema realmente passará.

(Não que eu esteja ousando comparar um mero blog à literatura em si, porém,) se Dostô não estivesse certo, a literatura há séculos não seria possível, já que os humanos temos uma quantidade limitada de assuntos centrais: a vida, a morte, o sagrado, a guerra, o sonho, a exploração, o convívio, a injustiça, a identidade, a liberdade, a arte, o ódio, o amor. Para onde quer que os textos de todo um mundão – incluindo aqueles destinados a teatro, TV e cinema – venham a fugir, disso não fogem muito; narram diferente com personagens diferentes, usam estilos distintos em abordagens distintas, e no entanto esvoaçam eternamente em torno das velhas questões, as essenciais, as célebres. O que nos cabe, e não é pouco, é ir puxando fiozinhos diversos do mesmo tecido, bordando novas figuras com a mesma matéria-prima, arrumando de outras maneiras as mesmas cores (tal qual os compositores rearranjam infinitamente as mesmas notas), a fim de que o planeta continue uma casa interessante em suas histórias e discussões. A julgar pela produção ininterrupta e sempre renovada de genialidades – dOs lusíadas aO nome da rosa, de Romeu e Julieta a Crime e castigo, de Dom Quixote a Grande sertão: veredas, da Odisseia a Ulisses –, continua.

Então o amor, o exaustivamente decantado amor, não pode ser cômico e turbulento em A megera domada, sombrio e exasperado em O morro dos ventos uivantes, ácido e pungente em A culpa é das estrelas, inocente e brejeiro em A moreninha? A guerra não é uma coisa em Tolstói, outra coisa em Anne Frank e uma terceira em H. G. Wells? A formação do eu não é incrivelmente discrepante em Jane Eyre, em O vermelho e o negro e em Memórias póstumas de Brás Cubas? Os descalabros sociais de Os miseráveis não têm contexto bastantemente dessemelhante dos de Fome e dos de Vidas secas? Que sejam iguais os fermentos: em cada mão a massa é uma; este autor vai temperar o clássico enredo de vingança com um toque de fadas e uma anedota de família, aqueloutro vai escavar o ciúme com uma pegada sufocante de tão seca e uma ambientação oriental, um terceiro vai ajustar a narração de um julgamento à oitava camoniana – e daí não sairão nem O conde de Monte Cristo, nem Dom Casmurro, nem Perry Mason, mas pratos literários em tudo avessos a seus xarás de tema. Um alívio, aliás, ter plena certeza de que nunca nos cansaremos de nós, nunca renunciaremos ao "e se fôssemos por aqui?", nunca deixaremos de encontrar aquis. Nunca, jamais perderemos a arte por falta de assunto.

(Não é de objetos que um texto é feito: é de um sujeito.)

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