segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Dos outros lados da vida


Meio atrasadita como sempre, assisti a Soul, a mais recente obra-primazinha da Pixar hospedada na Disney+. Para quem não viu só digo que: veja. E digo também que evite ler o resto do texto, a não ser que pertença ao estranho grupo de pessoas que adoram cheiro de spoiler pela manhã.

(Continuou mesmo assim? não posso parabenizar pela escolha, mas OK, então vamos.)

Antes de mais nada, Soul não é para crianças, ainda mais profundamente do que seus "irmãos" Viva e Divertida mente não eram; o fato de desta vez termos um protagonista adulto, aliás – ao contrário das duas outras animações, centradas respectivamente no menino Miguel e na menina Riley –, já diz muitíssimo sobre o longa. Miguel e Riley apenas começavam a viver, no sentido cronológico do termo, e seus sonhos, conflitos e fragilidades muito facilmente encontrariam eco na audiência mais novinha; o Joe Gardner de Soul, porém, é um professor de meia-idade adultissimamente dividido entre contentar-se com o emprego estável e investir na paixão pela música, entre cumprir as expectativas da mãe e sentir que sua passagem pela Terra tem significado, entre abraçar o sim que consegue e desmentir sua coleção de nãos – sem perceber que, na aflição obsessiva de seu (im)possible dream, foi subestimando uma montanha de sins pequeninos e rotineiros. Como parceira acidental e perfeito contraponto, Joe "ganha" a alma não nascida 22, provavelmente a maior veterana e a pior enfant terrible da Escola da Vida (local de pré-existência repleto de alminhas fofas e cabeçudas); 22 simplesmente SE RECUSA a viver tanto quanto o músico se recusa a morrer, o que torna bastante irônica a circunstância de ser ela a verdadeira instrutora de vida de seu suposto monitor.

Apesar de alguns furitos no roteiro e algumas situações aparentemente inconclusas (por que a mãe de Joe não sabe sobre o acidente? por que Joe "expulsa" o conteúdo do gato – e, nesse caso, como o gato volta a ser gato? o que aconteceu com o personagem Paul após aquele ligeiro trauma? Joe ligou para Lisa, afinal?), que fazem de Soul uma obra menos resolvida e redondinha que as outras duas citadas, ainda temos um produto Pixar com todas as suas pixarices encantadoras. Está ali a incrível habilidade de traduzir em concreto o que é absolutamente abstrato – com fartura de soluções e conceitos fantásticos como o Salão de Todas as Coisas, os Zés sem identidade ou forma definidas, o grupo dos Místicos sem Fronteiras, os viventes apartados da competência de viver; está ali o maravilhoso blend de fofura, drama, humor (com destaque, neste último quesito, para as hilárias interações entre 22 e seus diversos monitores); está ali a sensibilidade pixariana de, em sábia decisão artística – e comercial, claro –, desatrelar o processo pré e pós-morte de qualquer religião específica, optando por um caminho lindamente ecumênico. Mas é mesmo da relação de Joe com 22 que saem os dois fios mais comoventes do longa. Em primeiro lugar, o elogio extraordinário à figura do professor, retratado como alguém que consegue inspirar mesmo quando parece passar despercebido e desapercebido; é quase impossível segurar as lágrimas ao ouvir Joe se oferecendo para acompanhar 22 em sua maior viagem, sendo alertado de que "não vão deixá-lo ir" e respondendo – numa representação de todo educador que só pode conduzir cada aluno até certo ponto, a partir do qual o formando precisa seguir sozinho – que tudo bem, "não vão, mas vou até onde eu conseguir".

O segundo fio interpretativo mais impressionante de Soul constitui sua própria essência, sua própria "moral": o nicho que precisa ser preenchido em nosso peito, a fim de que contemos com um passaporte seguro para o mundo, não necessariamente está relacionado a fazeres e afazeres, propósitos, missões – ou principalmente: profissões. Não é sine qua non que nosso encantamento pelo privilégio de viver se manifeste com qualquer sentido utilitário, se prenda a qualquer encaixe nosso como peças de uma grande engrenagem produtiva, como batedores de metas, como superadores de obstáculos. Por sinal que muitas vezes (ilustra-o bem a indiferença do protagonista músico à música do rapaz no metrô, em contraste com o total alumbramento da alminha virgem diante da apresentação) é a própria obsessão de bater metas e superar obstáculos que nos esvazia de um entusiasmo original, visto que somos empurrados a perseguir os quês e não os comos. É o desespero ou a obrigação de chegar lá que nos faz esquecer por que estamos indo para lá anyway.

Enquanto a vida só-ela-purinha, com seus sóis e carretéis e pizzas e pirulitos, já é mais do que suficiente para manter e renovar o spark das almas todas e ainda algumas. A vida – sendo ela mesma – basta.

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