domingo, 28 de fevereiro de 2021

O que resta

"Quero que as coisas dominem e encham a imaginação de quem escuta, de tal modo que o ouvinte não tenha nenhuma lembrança das palavras", disse outro aniversariante ilustríssimo da semana: Michel de Montaigne, 488 aninhos completados hoje. Sou uma evidente fã de palavras e acredito não haja a menor dúvida de que Montaigne também era, ou era muitíssimo mais, porém compreendo a motivação da frase; quem fala ou escreve normalmente deseja, antes de mais nada, exercer uma espécie de sedução sobre a audiência – e sedutores escolhem sim a minúcia dos detalhes para o agrado dos seduzidos, mas seja maior ou menor a alegria nessa escolha é à rendição dos seduzidos que visam afinal. Pode-se cobrir de pétalas o texto, selecionar os termos bordados a ouro, borrifar o ambiente de rimas, amaciar o clima com verbetes 800 fios que embalem a concentração da assembleia num movimento encantatório: o autor mais apaixonado por pétalas, bordados, ouros, perfumes, rimas, delicadezas ainda será mil vezes mais apaixonado pela paixão alheia, e nada dirá ou escreverá sem a mui íntima (e eventualmente desconhecida) esperança de ser correspondido.

Escritores, atores, oradores, palestrantes são bichos carentes; uns mais, uns menos, mas todos – e posso jurar que todos os demais artistas cuja matéria-prima não é a palavra o são igualmente: usam cada pinceladinha para enfeitiçar pelo conjunto da obra, ou, em última e inconfessa instância, pelo si-mesmo. Não é (sempre) de propósito esse autobenefício; o objetivo sincero apontado por Montaigne assume de fato a dianteira, quer-se ter o prazer de dar algum tipo de prazer, de criar uma experiência. Sim, mas afinal por quê? – para ser-se lembrado por ela. O produtor de um livro, uma peça, um filme, um quadro, um discurso, uma escultura, em se desdobrando para derramar suas capacidades naquilo que prepara para olhos e ouvidos de outrem, como que usa uma extensão dos próprios braços para enlaçar os espectadores no abraço mais possivelmente doce, ou (se é sua vibe) uma extensão dos próprios pés para aplicar-lhes alguns chutes; qualquer que seja seu estilo, é inevitável que venha a se transportar em parte para sua obra, que venha a pigmaliar-se com sua galateia, que se confunda com o que cria a fim de que a plateia também o confunda com aquilo que sente a partir do que é criado. Desenvolvedores se pretendem amados, odiados, queridos, polêmicos; ignorados e esquecidos, nunca.

Com certeza essa pessoalidade que demanda atenção não é prerrogativa única da arte e de seus quintais – qual criatura, ora bolotas, não quer ter seu trabalho reconhecido? –, porém é natural concluir que, quanto maior a subjetividade do que se produz, maior a fusão do quem com o quê, sendo o quê profundamente dependente do como. Nenhum receptor de mensagem jamais se desapega do como. Se alguém é pedido em casamento por um cidadão que recita um ato inteiro de Romeu e Julieta, mas que o faz com frieza e indiferença óbvias, provavelmente responderá com frieza e indiferença mesmo que a cena se passe aos pés da Torre Eiffel e entre fogos de artifício; se, ao contrário, é pedido em casamento no boteco da esquina por um ser que nem consegue falar de tanto amor e lágrimas, a tendência é que ambos confundam amor e lágrimas noite adentro, como se estivessem numa Paris eterna. Não é (sábio Montaigne, que devia mandar bem nas declarações) a lembrança das palavras, é aquilo que enche a imaginação e a domina; é o gosto que resiste no céu da alma, o retrogosto da memória, o número de batimentos que vem com a evocação, a pressão arterial que sobra quando o acontecimento se revive. Não é precisamente o que nos é dado; é o que resta.

O que se ama é a saudade da festa.

Nenhum comentário: