sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Uma vontade de estar aqui um pouco mais

Lindo quando a gente se vê num poema, como este da paulistana Mariana Ianelli: "Ela não quer fechar os olhos, é uma vontade/ De estar aqui um pouco mais, só mais um gole,/ É essa sede de ver que não se deixa adormecer,/ Vontade de que a noite transborde, e seja agora/ Mais um jasmim, mais um azul, mais uma volta/ O corpo já boia no ar entre dois braços, é uma criança/ Que dorme, mas é de olhos abertos que ela dorme...".

Por que me vejo? Porque conheço devidamente bem "essa sede de ver que não se deixa adormecer", e tanto e de tal forma que fico não sendo exemplo para ninguém, já que não raro sacrifico horas fundamentais de sono pelo impulso de brincar mais, um pouco mais. Brincar, sim; ocasionalmente pode ser até questão de trabalho (em vida de professor não é improvável que seja), porém o nervoso maior e mais constante é similar ao infantil, guardadas as proporções – não um frenesi de fazer batalharem super-heróis de plástico ou de desfilar bonecas, mas em todo caso uma inquietação por coisas legais, que parecem não caber de nenhuma forma razoável em meras 24 horas. Em especial por não serem 24, ó roubo!; há o tempo das obrigações, há o tempo do descanso inconsciente. Qual acaba garfado? O último, claro; o que precisamos fazer é o que precisamos fazer, sem grandes negociações: roupas não se lavam sozinhas, almoços não brotam espontâneos na mesa, atividades escolares não se elaboram nem se corrigem autônomas; mas com o sono sempre se arranja alguma conversa, algum cambalacho, tirando-se umas aparas daqui e dali para esticar os projetos da vigília. O sono, porque mais nosso, mais elástico.

Vem desde eu criança essa luta contra a gravidade das pálpebras, feito a menininha do poema; dizem que nos primeiros anos, se acontecesse de eu cochilar à tarde, reinaugurava-me de péssimo humor e de trato enjoadíssimo – não só porque o reinício no meio do dia me deixava aturdido o relógio interno, mas porque era CLARO desperdício de lápis de cor, TV, brinquedo, quintal. Como assim dormir, em detrimento de tantas possibilidades acordadas? Mudei pouco nessas paranauíces: verdade que os cochilos não me mal-humoram como antes, nem são as mesmas (óbvio) as esferas do brincar, porém a resistência ao sono se manteve; aliás evoluiu, conforme lhe foram adultamente evoluindo os recursos para avançar pela madrugada sem outros adultos mandando ir para a cama. Livros como brinquedos, computador como lápis de cor AND imenso quintal maior que um mundo, TV ainda como TV (se bem que um milhão de canais mais gorda) – de que maneira persuadir o cérebro a cessar de explorações e correrias quando a noite silencia tudo e o planeta é dele, só dele? Então acorrem as duas, as três, as quatro badaladas antes que os neurônios se animem a cessar a valsa, embora se arrependam recorrentemente quando horas depois levantam imprestáveis, tornados abóbora.

A quem desinteressar eu possa, não recomendo o sistema, que tem o primor de ser péssimo para a memória, a concentração, o vigor, a agenda, a saúde, o apetite; se ainda pratico é porque a sede de ver vira rápido, rápido um alcoolismo moral de curiosidade, sôfrego de mais uma dose de internet, um gole do programa, uma página, uma hora. Estamos trabalhando, no entanto, para pegar esse vício no indesperdício e melhor desatendê-lo, já que encarna o desperdício ele próprio; a exaustão, as olheiras não são certamente a melhor estrada para quem se toma da vontade de estar aqui um pouco mais – muito mais. Para mais um jasmim, mais um azul, mais uma volta (e outras, e outras, e outras neste carrossel da Terra), estou ciente: nada tão sensato quanto estacionar a carruagem num hotelzinho e aguardar o sol para seguir viagem de olhos bem abertos.

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