quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Mamihlapinatapai


Não é bonita essa palavra que acabei de aprender, pertencente à língua yagan (idioma indígena da Terra do Fogo que tem atualmente, como falante, uma única pessoa)? É termo preferencialmente voltado para a esfera romântica, mas combina à maravilha com a situação política de boa parte da história do Brasil como a conhecemos. Explico: mamihlapinatapai significa "um olhar trocado entre duas pessoas no qual cada uma espera que a outra tome a iniciativa de algo que as duas desejam, mas nenhuma quer começar". Familiar ou não? Realmente não sei como nenhum (creio que nenhum) outro sistema linguístico do planeta gestou palavra de semelhante significado, principalmente nosso português brasileiro, situado tão na vizinhança geográfica e indecísica.

Não pretendo de modo algum desmerecer todas as lutas que foram e continuam sendo aguerridas na trajetória daquele Brasil raiz, concebido e levantado por nós e nossos ascendentes – o Brasil que é e que batalha para ser, para assumir-se, para libertar-se. Também não pretendo sugerir irresponsavelmente que, neste momento de coronavirulência desenfreada, as pessoas da resistência nos exponhamos em manifestações e aglomerações de pressão ao "governo". Reconhecer, porém, que há entre nós um país que já pelejou consideravelmente, e um país que só devido à pandemia deu um tempo de estar nas ruas pelejando ainda mais, não implica negar que tenhamos "encostado" em nós um outro país perplexo, perdido, pasmacento que fica exatamente como descreve o termo yagan: entreolhando-se em meio ao caos para sondar a quem cabe a iniciativa. Vou nem contar, nesse processo, os abutres que deveriam proteger-nos da calamidade e são precisamente nossos maiores inimigos – sim, eles delegam e culpam uns aos outros, mas em nenhum momento com a remota intenção de acertar, de pegar alguma parcela de responsabilidade, apenas de esquivar-se e safar-se; afinal, abutres. Estou contando somente brasileiros propriamente ditos (não vampiros, sanguessugas, canalhas acoplados à nossa terra na esperança de ressecá-la inteira e vendê-la para o ferro-velho), brasileiros reais, normais, de propósitos limpos, atacados pelos parasitas e no entanto paralisados diante da ideia de reagir a eles.

É compreensível; temos um largo, infelicíssimo histórico de chibata, tortura, coronelismo, milícia, represália, "circulando, circulando, nada pra ver aqui". Massacrou-se uma quantidade absurda de gente que atrapalhava a construção do mito (horrivelmente falso, como todos os mitos) da brasilidade passiva e dócil, aquela que dá uma boiada pra evitar a treta. Massacrou-se, da mesma forma, a história dessa gente que ousou peitar o sistema, e de modo geral se assumiu o ponto de vista dos esmagadores para desencorajar futuros malês, Zumbis, Dandaras. Como estranhar que tantos de nós estranhemos a posição de luta, preferindo nos salvaguardar na individualidade em vez de nos envolver em coletividades (partidos, movimentos, quilombos, cooperativas, sindicatos, ocupações) que os parasitas difamam e perseguem? Não é nem um pouco de assombrar que, após séculos de persuasão para fechar a boca, seguir com a vida, fingir que não viu, deixar pra lá, boa parte do povo estoure de indignação mas se limite à troca de olhares – encarnada nos esbravejares de barzinho, nos comentários inócuos de rede social, nas vagas reclamações em família. Embora não seja culpa desse povo privado de informações sólidas e do tempo de consumi-las, não se pode isentá-lo da responsabilidade que, queiramos ou não, todos herdamos; o Brasil nos calhou em sorteio e já se faz tarde a hora de chuparmos decentemente esta manga.

Precisamos, sobretudo (seja isso providenciado pelo próximo governo de esquerda, amém), de educação política desde os primórdios: como o país funciona, como se estrutura, o que as leis realmente nos asseguram, a quais organizações e instâncias podemos recorrer quando ninguém nos assegura o que as leis supostamente nos asseguram, que outros degraus podemos subir quando essas organizações também falham, para quais e-mails podemos escrever incessantemente, que eventos podemos combinar internauticamente para botar pressão relativa a projetos que exigimos ou rejeitamos. Precisamos que brasileiros descubram por que convém fortalecer e apoiar sindicatos, por que a mídia deve ser regulada – e por que isso nada tem a ver com censura, é ao contrário oposto a ela –, de que maneira se montam eficientes revoluções também no silêncio que não é alienado, na desobediência que tem claras direções, no boicote que se torna eloquente no mercado e nas urnas. Precisamos de conhecimento, de objetividade, de logística, de opções. De alternativas.

Um pelo outro, cabe a nós olhar; mas não precisamos continuar olhando um para o outro pra ver quem começa.

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