sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Admiro


Admiro quem consegue trabalhar de razoavelmente para bem, neste nosso aprazível verão de Mordor. Admiro quem abraça coraçãomente um milhão de causas sociais. Admiro quem tem cérebro fulgurante para xadrez (alô, Beth!); quem intrinca uma tonelaiada de informações e pistas num roteiro sem deixar pendurado um só fiozinho; quem se dispõe a ter filhos nesta calamidade de país e cumpre, de fato, a meta de ser o melhor pai ou mãe que se possa querer; quem aguenta o tranco de abrir alguém numa mesa de operação, tirar órgãos, mexer órgãos, consertar órgãos com mão firme e intremida; quem se pendura em andaimes para colorir cidades com o gigantismo de painéis lindões; quem cozinha um feijão gerador das melhores memórias. Quem cozinha qualquer coisa geradora das melhores memórias. Quem cozinha.

Admiro os que aprendem maciamente a dirigir. Admiro os que andam deslizantemente de bicicleta. Admiro os (e principalmente as) que vestem roupa de banho cagando com toda a solenidade para opiniões alheias. Admiro os que manifestam ricas habilidades esportivas (eu que tenho, disponíveis para jogos, 37 pés e mãos que tomara fossem esquerdos, porque nem compatíveis com a lateralidade humana são). Admiro os que tocam instrumentos em público; os que transbordam alma de cativar criança; os que esculpem na areia; os que se desculpam com amor; os que mandam bem no uso do hashi, do acento grave e do hífen; os que ficam fluentes à perfeição em outra língua; os que tricotam, tricotam e sabem direitinho o que estão tricotando; os que doam sangue frequentemente, porque sim; os que, ouvido-absolutamente, identificam a nota musical até do peteleco numa tampa de panela; os que estão vendo a partida e, sem tira-teima, cravam: foi impedimento; os que não se perdem nunca nos sobrenomes russos dos personagens; os que não se perdem. Nunca.

Admiro os justos, não os neutros – não posso, aliás, conceber que HAJA neutros, apenas pessoas desinformadas ou temerosas demais para agarrar uma posição. Admiro os focados em estudo, estudo, estudo, esses com quem jamais me identificarei sobre a terra. Admiro os intelectualmente honestos, os materialmente desapegados, os ficcionalmente inventivos, os zeromente possessivos, os educativamente criativos. Admiro gente objetiva no papo, na reunião, na solução, na música, na telona, na telinha. Admiro gente medular e modelarmente humilde, tão disposta a aprender deste como daquele – corações molinhos, flexíveis, dóceis ao reconhecimento do erro e abertos à injeção de ideias potenciais. Admiro os de essência leal, cristalina de acesso, limpa no trato, incompetentíssima para bajulação e mentira.

(Ah, a dor profunda de não serem esses os nossos representantes. Mas não me admira.)

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