domingo, 14 de fevereiro de 2021

Pálido Ponto Azul


Esse do título é o nome de uma famosa foto da Terra, tirada em 14 de fevereiro de 1990 pela sonda Voyager 1. A querida Voy tinha, na ocasião, a missão de fazer várias imagens do Sistema Solar (que formaram um mosaico chamado Retrato de Família, não é fofo?); já havia cumprido sua parte e estava batendo em retirada quando, a pedido de Carl Sagan, virou a câmera e fez um último clique de nosso planetinha – mais inha do que nunca – perdidíssimo no meio de um raio, afogadíssimo nas profundezas do mar espacial sem fim. Uma poeira. Um pixel. Um projeto de pulga. Conseguem vê-lo? é aquela coisiiiiiiinha ínfima, ridiculamente minúscula, pousada no meio da última faixa de luz. Pois é, eu também demorei para achar, mas é bem nesse negocito que moramos todos nós – nosso Pale Blue Dot, por enquanto a casinha única de que dispomos no universo, embora tantos vivam como se contassem com pelo menos 1.047 refis.

Sobre a eloquência da foto, discorreu Sagan em palestra dada na Universidade Cornell: "A Terra é um cenário muito pequeno numa vasta arena cósmica. Pense nos rios de sangue derramados por todos aqueles generais e imperadores, para que, na sua glória e triunfo, pudessem ser senhores momentâneos de uma fração de um ponto. Pense nas crueldades sem fim infligidas pelos moradores de um canto deste pixel aos praticamente indistinguíveis moradores de algum outro canto, quão frequentes seus desentendimentos, quão ávidos de matar uns aos outros, quão veementes os seus ódios. As nossas posturas, a nossa suposta autoimportância, a ilusão de termos qualquer posição de privilégio no universo, são desafiadas por este pontinho de luz pálida. O nosso planeta é um grão solitário na imensa escuridão cósmica que nos cerca. Na nossa obscuridade, em toda essa vastidão, não há indícios de que vá chegar ajuda de outro lugar para nos salvar de nós próprios".

Duas verdades acachapantes, essas apontadas pelo astrônomo: como são vexatórias as tretas em que nos envolvemos pela posse de mais metro menos metro de um CISCO feito a Terra, e como é crucial introjetarmos que somente nós nos salvaremos de nós, nenhum árbitro de planeta vizinho vai mandar um deixa-disso ou apitar o jogo. Convém, aliás, fazer o exercício (apropriado para tempos carnavalescos) de vestir a fantasia imaginária dalgum etê das redondezas que observasse nossa Lilliput e considerasse a possibilidade de interferir no formigueiro; imaginemos, apenas IMAGINEMOS nossas próprias reviradas de olho ao constatar que aquela gente pitoca se recusa a parar de destruir sua ilhazinha infinitesimal, que meia dúzia de três ou quatro pitocos julga ter o triplo do direito de todo o resto, que algumas pessoinhas ridículas puxam o cabelo e dão na cara umas das outras por causa de um crush de fim de semana, uma cadeira no cinema, um garfo, uma careta, uma opinião, uma tangerina. Dá pra culpar o Thanos ou os aliens enraivecidos de Guerra dos mundos por desejarem nos pulverizar? Somos insuportáveis, lastimáveis e irritantes exatamente porque não vemos o quanto somos incríveis, potentes e talentosos, e de quão pouco tempo dispomos para sê-lo, e quão estúpida é a decisão de gastarmos esse pouco tempo sendo insuportáveis, lastimáveis, irritantes e devoradores do coleguinha.

Fôssemos um grupo de lilliputianos sensatos, imprimiríamos a Pale Blue Dot e a grudaríamos na porta da geladeira, a fim de recebermos todo santo dia o salutar estímulo baixador de bola. Embarcou numa de acreditar que nenhum psicólogo da espécie humana seria capaz de entender suas questões, tão formidavelmente transcendentais elas são? Mergulhou na trip de que sua tese é a do gênio dos gênios, e de que nada será como antes na galáxia depois que você a revelar? Passou a noite inteira empapando o travesseiro de chorar pelo namoro que era O Namoro infinito e único, cujo término talvez desalinhe a órbita dos planetas? Oh, please, veja quem somos, onde estamos: nesta bolinha de gude indecentemente microscópica no meio do próprio sistema, que dirá no meio de bilhões e bilhões de sistemas outros. Não é que por isso devamos desistir de tudo, pelo contrário; devemos investir em tudo que faz cada rotação da bolinha valer a pena, descartando todos os comedores de vida – disputas cretinas, vaidades idiotas, preconceitos (desnecessário qualificá-los, já que são todos imbecis), desamores, mil nhenhenhices que atravancam areia-movediçamente nosso tempo e espaço tão limitados. Se somos assim nanicos, frágeis, sujeitos a peteleco, o bom senso recomenda que nos conservemos tão unidos em prol da preservação coletiva quanto atentos às verdadeiras demandas individuais (muito diferentes de pulsões implantadas e egoístas); carecemos do máximo bem-estar entre os membros da equipe para que a pequena e débil nave mãe continue operável pela maior eternidade possível.

A grandeza que nós – pulguinhas – tanto perseguimos, só a recolhemos de nossa insignificância.

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