sábado, 13 de fevereiro de 2021

Como um patinho


Estava caçando imagens, esbarrei com algumas fotos lindas de cisnes com seus cisnitos e de repente me ocorreu: nossa, mas como a história dO patinho feio é escrota. A história em si e todas as produções de TV, teatro e cinema que bebem desse lago. Certo, não há muito exagero na caracterização literária das avezinhas – pelo menos os baby cisnes que vi eram realmente feiositos, de penugem cinzenta e incerta, um ar de rascunho –, mas independe de maior ou menor precisão biológica a minha antipatia; o que de fato me deu e dá assomo de irritação é considerar que, no conto, só existe final feliz porque o patinho fake se revela um cisnão imponente, e que provavelmente continuaria a haver a mesma desolação no personagem, o mesmo bullying, se ele fosse verdadeiramente um pato, nada mais que um pato fora dos "padrões". Que feio.

Em geral se conta essa historinha às crianças para persuadi-las a ter paciência, resiliência e confiança no futuro – caso se identifiquem com o protagonista rejeitado –, ou para mostrar-lhes que "estão vendo? não façam isso com ninguém, um dia quem vocês desprezam pode dar um baile em vocês" – caso os leitores/ ouvintes tendam para o grupo dos rejeitadores. Nenhuma das duas perspectivas está exatamente errada: sem dúvida, um serzinho que hoje se acha desengonçado e sem graça pode florir de maneiras insabidas, e idiotas que perseguem os "diferentes" não raro se chocam, anos depois, de ver que sua antiga vítima se tornou übermodel, estrela do rock ou ganhador do Nobel. Acontece. A possibilidade de vir a ser um fato, no entanto, não equivale à CERTEZA de isso ocorrer; muitomuitomuito principalmente: a possibilidade de vir a ser um fato NÃO DEVERIA ser importante. Usar a velha narrativa para engendrar pequenos condes e condessas de Monte Cristo que sonham espezinhar seus espezinhadores, ou então para levar espezinhadores a se comportarem por mera autodefesa, me parece quase tão horrível quanto não interferir no processo.

"Patinhos feios" podem sim virar cisnes – mas podem não virar. E está tudo perfeitamente bem, não têm a menor obrigação de virar; o que funciona perfeitamente mal é uma cabecinha que se impõe a condição de uma futura maravilhosidade para obter respeito e pior, desforra. Ninguém precisa (nem deveria ser incentivado a crer que precisa) fazer 38 plásticas, perder 97 quilos, ganhar 5 milhões, comprar título de nobreza ou retornar tietamente para Santana do Agreste a fim de ajustar contas com seu passado. Ninguém precisa passar de loser a winner, segundo o sistema de avaliação competitivo-capitalista, antes que seus algozes se arrependam sinceramente dos maus julgamentos. Até porque, diga-se, isso TAMBÉM é reforçar a visão cruel e embaçada dos algozes: é nivelar-se e valorizar-se pelo ponto de vista DELES; é apreender tácita ou explicitamente que apenas beleza, riqueza, inteligência identificadas como aceitáveis capacitam para a consideração social, a amizade e o amor. Adianta? Não adianta. Aquilo que era sofrimento infantil somente é promovido a meta, ideia fixa, e motorizado na força do ódio; curar-se, não se cura.

O que cura de uma vez por todas é (auto)aceitação plena desde sempre, ensino do amor incondicional ainda no útero, desestímulo ao julgamento e à competição, assassinato dos preconceitos antes que sequer respirem, encorajamento da colaboração em todos os casos, ensino de que, num mundo realmente próprio para consumo, eu sou porque nós somos – e cada um tem seu lugar assegurado (o que quer que deseje assumir pelo bem comum) e suas características abraçadas. "Ah, mas o mundo não é assim": não é porque não o fazemos ser, contentando-nos com dizer que o mundo não é assim. Se ele ainda não é, pois que tire o traseiro da cadeira, arregace as mangas e fique sendo; o espaço que caminha para a extinção, para o esgoto da História, é o da discriminação fantasiada de cultura, o do comodismo de permanecer intolerante, o da preguiça de rever as próprias burrices em nome de uma "autenticidade" que é simples covardia, ruindade, recalque, mau-caratismo.

Feio, feio, feio.

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