segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Saber-se amado


São João Bosco, nascido há exatinhos 206 anos e chamado por São João Paulo II de "Pai e Mestre da Juventude", dizia com toda a lindeza: "Os jovens não só devem ser amados, mas devem saber que são amados. A primeira felicidade de um menino [de uma criança, ele queria evidentemente expressar] é saber-se amado". Não creio que qualquer psiquiatra, pedagogo, psicólogo, criançólogo do universo viesse a discordar. Todo ser humaninho deve obviamente nascer e crescer com sustança física, amamentado de tudo quanto põe o corpo para funcionar pleno; deve também, com igual obviedade, contar com paz e abrigo – criar-se perseguido, sem-teto, em sobressalto, numa zona de guerra é algo potencialmente destrutivo para o espírito humano, ninguém em sã consciência o questiona; mas ainda assim me parece que corpo e mente vieram programados, em nós, para regenerar-se de quase quaisquer horrores, tão logo as melhores condições lhes sejam fornecidas. Me parece que temos DNA de fênix em quase todos os campos, DESDE QUE recebamos para isso os devidos instrumentos e reconfortos (longe de mim romantizar guerras e misérias, Deus me livre). QUASE todos os campos – com exceção de pelo menos um: é praticamente irrestaurável um coração que não se sentiu amado logo de início, bem nos seus primeiros tempos de mundo. Uma vez que lhe seja imposta essa ferida primordial, nunca mais que o básico do básico de sua estrutura cicatriza.

Não se ver ou se saber amado ao estrear no planeta implode de cara um alicerce psicológico, antes de ele formar uma só molécula; absolutamente NADA é mais importante para o equilíbrio, a sanidade, a autoestima, a confiança humana do que a constatação de que se é necessário, de que sua existência não é um equívoco, de que sua presença afeta positivamente ao menos uma outra presença. Pessoas PRECISAM ter a relevância confirmada como quem precisa obter uma autorização para estar no mundo; pessoas carecem ter, feito os e-mails que registramos em variados sites, a identidade autenticada para operar de fato, para assumir seu lugar de direito. Que motivação pode viver no fundo duma alma de nossa espécie, senão autenticar-se em outra – refletir-se em outra? Nada mais está à nossa altura na Terra, em termos emocionais; ninguém nos preenche além de mais um ou mais uns de nós; nenhuma experiência de acolhimento nos basta, se não passar por um ou mais de nossos semelhantes ou pela relação com a divindade, que em grande parte tem a existência de nossos semelhantes como intermediária. A educação que nos forma em todas as instâncias se dá por projeção; se sem um falante não aprendemos a falar, se em cada mínimo gesto cultural estamos perdidos sem um modelo para reproduzir, também não reproduzimos amor se não o recebemos da fonte – se não contamos com um emissor capaz de irradiá-lo convincentemente sobre nosso espelho profundo.

Amar uma criança é informá-la, instruí-la: olhe, é isso que nós terráqueos fazemos; é assim o amor. É para isso que você serve, para exercitar desse modo a escuta, para consolar os demais como se sentiu consolado, para transmitir força da maneira como foi erguido, para dar aos outros a bênção dos talentos com os quais sempre ouviu que foi abençoado. "Ah, mas alguns guris crescem em famílias disfuncionais e se tornam seres maravilhosos, alguns crescem em famílias show de bola e viram serial killers." Sim, estrupício, acontece de tudo, porque mecanismo humano não é mecanismo relógico; mas é, sem dúvida alguma, um mecanismo lógico – de modo que casos tais serão as velhas e boas exceções, mesmo assim relativas. Afinal, quem há de saber se o que parece uma família show de bola supre realmente as necessidades emocionais de um filho ou se vai negligenciando os sinais de que há, ali, vácuos inatendidos e insaciáveis? quem há de saber o tamanho de uma sensibilidade, de uma vulnerabilidade, de um tormento inato, de questões que moram nos pontos cegos mesmo de casas teoricamente acolhedoras? E quem há de medir a calidez do afeto que conseguiu ser 100% downloadeado mesmo em casas teoricamente disfuncionais? Sendo que ninguém sabe e que há variantes infinitíssimas, só nos resta jogar o jogo mais certo, mais garantido, mais seguro: amar uma criança clara e ostensivamente, notoriamente, carinhosamente, com muita presença, muita empatia, participação, conselho, brincadeira, aniversário, passeio, acampamento, abraço, pipoca, firmeza, limite, companhia. Amar uma criança sem lhe deixar quaisquer margens para dúvida, quaisquer ressentimentos ou mal-entendidos pendentes, quaisquer problemas de momento nublando o que precisa ser uma estrela da vida inteira. Amar, amar, amar, amar com amor legítimo, sem mimo (sendo este afinal uma impostura, um enredo desonesto).

Nosso estágio de ser-humanice mora no amor que nos é manifesto.

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