sábado, 21 de agosto de 2021

Não sou doutora de nada


"Não sou doutora de nada,/ mas entendo de sentimento.// Sem grande valia,/ de muita prestança.// Do vento,/ conheço bem riso e pranto.// Do rio,/ sei quando namora.// Da noite,/ nunca perco o azul." Diz isso – e diz mais – Heloisa Helena de Campos Borges, num seu poema; me disse muito, muito. Também não sou doutora de nada, provavelmente não serei jamais, mas vá lá, de alguma coisa também entendo sem grande valia e de muita prestança: uns poucos de coisas incolocáveis no currículo, umas quinquilharias de conhecimento, difusas, esparsas, ainda assim servíveis para quando se precisa lembrar o nome daquele ator, o nome daquela flor ou o lado certo do papel alumínio.

Não sou doutora de nada, mas pela folha reconheço jasmineiros, azaleias, oitis, cafés, figueiras, mangueiras, pitangueiras, mamoeiros e mais umas plantaiadas que cresci sabendo. Falo de cor a "última flor do Lácio, inculta e bela" e mais uma meia dúzia de três ou quatro poemas que cresci repetindo. Sei duma penca de remédios. Não sou ruim de cores nem de metáforas. Escolho não mal alguns presentes. Bolo não mal algumas soluções, como o que fazer com a bolsa nos banheiros públicos (nem pensem que cogito, eca, em pôr no chão; lanço mão de meus penduradores mágicos). Tenho uma razoável habilidade de trazer a fala ao seu registro mais gentil.

Não sou doutora de nada, porém leio de longe o assobio dos morcegos e dos miquinhos. Me faço perenemente entretida comigo mesma, e por isso dificilmente estressada em filas (a não ser, claro, sob horários de vida ou morte). Sei do vento quando sopra mutante e tendente para outro clima. Sei da inutilidade de permanecer reclamando. Sou incapaz de neutralidade, mas não cato nem alimento briga. Cato sim é produto na internet: se existir, encontro. Encontro jeito de combinar estampas. Arranjo modo de permanecer otimista. Invento maneira de gostar de toda refeição – mais do que deveria, provavelmente. Consigo pôr de olho, no prato, a quantidade a ser comida, e consigo comer a quantidade que se pôs no prato. Canto com alguma afinação. Posso, conforme queira, ser objetiva ou prolixa. Faço malas com baixo índice de esquecimentos. Guardo uns tantos saberes bem sabidos do idioma.

Sem ser doutora de nada, nada – dumas miudezas tenho diploma.

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