terça-feira, 24 de agosto de 2021

A frase mágica


Pincei não sei de onde, como quem escuta um meio de conversa, este trecho tão lindo de Anaïs Nin: "... e ela tentou amá-lo. Mas ela reclamou que ele proferiu palavras tão comuns, que ele nunca poderia dizer a frase mágica que abriria seu ser". Ignoro completamente o contexto; para que contexto, no entanto? a coisa se entrega inteiramente com pouquíssimo, ao contrário dessa ela de Anaïs que bem desejara entregar-se e não pôde. Ela queria ser dele, ele talvez fosse belo, talvez fosse gentil até o extremo da contemplação ajoelhada, talvez fosse – lá sei eu o que ele seria, e o seria suficiente a ponto de ela TENTAR amá-lo – talvez fosse o mais carinhoso dos homens; mas ela, em compensação, vê-se que era mulher eminentemente verbal, possivelmente uma sapiossexual que só se abandonaria a uma inteligência abre-te-sésama.

Não posso dizer que não compreendo. Sou incapaz de me ver capaz dum amor fofinho mas tapado, generoso mas por demais denotativo; é preciso que haja uma fúria delicada na expressão, uma faísca que carbonize o clichê, o maldito clichê desmotivador de qualquer apaixonamento seguro e duradouro – porque não há encanto de poder, beleza ou outra semelhante origem que resista à convivência inapta para diálogos, estéril de trocas. É duvidoso algo sobreviver de ardente onde não existe nenhum fascínio sheherazádico, nenhum desafio linguístico (e olha que nem estou sendo trocadilha), nenhuma perspectiva de que a conversa vá gerar surpresas ou ondear o grafiquinho das palpitações; minto, aliás, não é duvidoso: é 99%mente certo que o relacionamento assim baseado não tenha futuro em que se crie. Nossas entranhas são narrativas, nossas veias são poéticas, ou nasceram ao menos com esse vácuo específico nas prateleiras; um amor que não nos dê de beber palavras limpas, palavras com a fresquidão inédita da fonte, está fadado a turvo e salobro, com duas criaturas envenenando a sede (e sabotando a saciedade) recíproca.

E então o quê? e então que o amor há de ser criativo, lírico, ainda que não estudado. Não carece fazer versos, mas precisa estar aparelhado para reconhecê-los, incorporá-los e – no caso remoto de vir a dizê-los – dizê-los sinceramente. Importa pouco se é um amor engenheiro, químico, oficial de justiça, lavrador, diplomata, físico quântico: importa que tenha os sentidos macios, permeáveis à percepção do que amacia o outro, do que faz cederem suas defesas, do que fecunda o coração alheio lá onde ele vive aberto em flor; importa que saiba notar (sem usar dos dados em seu proveito, além da cota razoável) com que chave a alma da criatura-alvo se escancara – se é piada, astronomia, slogan, pintura renascentista, poesia barroca, papo de pizza no sábado, debate de cinema ucraniano no domingo, Romeu e Julieta, pagode anos 90, elogio no tênis de mesa, elogio à boca, elogio à lasanha. O que for, o que couber, já que, para ser-se parte aninhada e integrante do relicário, é preciso fundamentalmente que o relicário se abra.

Amor é a paciência do abracadabra.

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