terça-feira, 17 de agosto de 2021

A flor que anda


Não é que a obra de Fernand Leger, pintor-escultor-desenhista francês falecido num 17 de agosto há 66 anos, propriamente me atraia ou comova; digamos que seu estilo profundamente cubista me afeta com vigor, em especial as várias "decomposições" da figura humana em formas e mais formas e mais formas e mais forminhas geométricas – um desbunde de esferas, cilindros, retângulos, cones, trapézios a perder de contagem –, que me perturbam com incômodo e vertigem. Mas afinal não chega a ser de todo negativo esse desconforto, esse reviramento de entranhas; o estilo de Leger não é certamente feito, anyway, para se contemplar na parede com o pensamento vagante e uma indiferença dos sentidos, enquanto se olha para o mar ou o jardim alternativamente. Pelo menos a mim, Leger (que chegou a ter como pupila a nossa Tarsila, assim rimandinho e tudo) traz aquele sacudidão de "acorda!", e puncha sem grandes cerimônias no estômago. Não sei que melhor reação um cubista poderia desejar além desse abalo total de nossos bangus.

Há no entanto uma escultura de Leger, ilustrada acima, que me evoca simpatias diferentes, quase próximas da fofura. Não é fofa em si, tudo bem; mas tem um conceito fofíssimo, a começar do título, La fleur qui marche – "A flor que anda". Pedindo perdão ao artista por compará-la a um pokémon e já comparando, destaco porém ser a versão menos possivelmente kawaii de um pokémon: suas pétalas desacertadas, díspares, desarmônicas e assíncronas (a despeito do número par) não convidam ao enternecimento gerado por boa parte dos monstrinhos pop, e se soma a essa impressão a ausência de mais traços animalizados, para além do de caminhar. A florzita caminha com personalidade e parece bem determinada a fazê-lo, mas não tem rosto nem qualquer sugestão que atenda a nossa pareidolia compulsiva; de que maneira ela AINDA ASSIM consegue meter carisma e exalar adorabilidade em seu desfile, ignoro – o que me extrai maiores palmas para o escultor, esse ser capaz de nos persuadir em 3D sem que sequer nos apercebamos de seu discurso.

Talvez a estranha simpatia da Flor que anda more no símbolo: trata-se duma representação (pode-se dizer universal?) de beleza, suavidade, presença amada que, possivelmente insatisfeita com o quanto se demora para trazê-la ao jogo, resolveu abandonar terra e estufa, resolveu mexer as raízes e se fazer tomadora de iniciativa. Para maior englobamento, a florzinha é de múltiplos formatos e cores; demonstra ser muitos e quiçá todos – todos os aptos a pôr-se em marcha, a desarrancar-se contra todas as probabilidades e dentro das viabilidades, a assumir com bravura a consciência do que existe a ser resolvido, ensinado, providenciado, fornecido, facilitado. Aonde quer que chegue a flor, sabe que encontrará precisâncias dela; sabe que haverá gente para parabenizar, corações oscilantes para flechar, corações enlutados para confortar, festas para alegrar, frutos para multiplicar; e é talvez por essa necessidade de se fazer múltipla e absorver inúmeros propósitos que a caminheira não levou o próprio rosto. Levou, antes, um largo espaço vago no miolo de si, dócil e amoroso com cada experiência (a)crescida.

É bem flor que anda, ademais, a vida.

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