segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Narrar e proteger

Extremamente poderoso, precioso, corajoso, fundamental e completo o depoimento da Pocah no Papo de segunda de hoje, a respeito do longo período de violência doméstica vivenciado por ela nas mãos de um companheiro ultramegatóxico que bingaria qualquer cartela do relacionamento abusivo: do "essa roupa está muito curta" até a ameaça aos familiares, do arrastar pelo cabelo até a manipulação religiosa ("não fui eu, foi o demônio em mim, mas nós venceremos e a força de nossa união servirá como testemunho"), do "suas amigas não são adequadas" até a agressão que quase cegou o olho esquerdo da cantora – episódio no qual, aliás, a mãe do covarde desgraçado ainda recomendou ao filho que não levasse a MC ao hospital, pois ela certamente o colocaria na cadeia. Emocionadíssima, como não poderia deixar de ser sob o peso tamânhico do assunto, Pocah fez questão de destacar a influência que a narrativa de ex-vítimas de violência teve sobre seu próprio movimento de libertação, e se posicionou lindamente quanto à importância de contar, por sua vez, tudo que foi vivido e vencido: "Elas [as que, neste momento, se sentem presas numa relação tóxica] veem uma oportunidade para mudar de vida quando alguém diz que conseguiu"; "[desejo] salvar vidas assim como a minha vida foi salva pelos relatos de outras mulheres". Que coisa potente, espetacular: abraçar com tanta inteireza, objetividade, lucidez o papel de exemplo, o papel de palavra curativa, por mais que as memórias voluntária e constantemente revolvidas continuem sangrando.

Não conheço o trabalho artístico da querida Pocah, mas pelo menos em termos de imensidão humana já posso dizer que virei fã. Quanto de dor não haverá em se dispor a falar de um período tão excruciante da própria biografia, quanto de bravura não será essencial para se rever aterrorizada e vulnerável, quanto de estômago não se fará necessário para revisitar cenas horríveis, humilhações sofridas, manipulações nauseantes? Principalmente considerando que o namoro infernal começou, segundo a cantora, quando ela contava tenros 16 anos, comove-me intensamente ouvi-la dissecando com crueza tantas mágoas, reolhando nos olhos do abismo com tanto desassombro, no intuito de evitar que mais meninas sejam engolidas por esse ciclo doente e que mais adultas nele permaneçam (e dele se tornem vítimas fatais). Como é gigante e libertadora a palavra, na condição de instrumento autorreconstrutor e na de elemento construtor de alternativas! Falar, escrever é um lançamento de boia; é uma produção de aconchego – afinal não estamos sós, existe no entorno o calor dos que nos precederam; é um espelho porreta de autoconhecimento; é um combustível de catarse; é uma diagnose; é um aviamento de receita para a cura. Falar & escrever também resgata, para assuntos cruciais, aqueles que não são tocados pela bolha do sei-que-isso-existe, mas se inundam de empatia quando o exemplo, em carne e osso, fura a bolha e joga a experiência na cara, papo retíssimo. O que é dito muito diretamente se holofota. Se materializa.

Pocah sabe – estende inclusive, para a esfera artística, a consciência demonstrada na social, e sublinha que não é futilidade quando canta "ninguém manda nessa raba": é algo especialmente pensado para desviar a mulher de qualquer lugar de submissão. Se uns e outros acharão vulgar a forma, não interessa; a mensagem ecoa, cantarola no inconsciente, normaliza-se, normatiza-se, transforma-se em convicção, por que não em grito de guerra, em palavras de ordem. O verbalizado, repetido, encarado acaba se fazendo agente empoderador, ratificador de autonomias, ato de investidura dos próprios desejos – e se mostra particularmente forte que uma mulher realize essa investidura sobre outra, sobre outras; mostra-se possante e significativo demais que mulheres se abram reciprocamente as portas e reciprocamente se validem, se autorizem. Não, não precisamos de que os homens o façam: já transcorreram excessivos séculos em que eles foram centrais de comando e pontos de referência.

Chega de tudo que leva à morte, meninas. Nosso grito é só independência.

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