segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Há uma manhã nascendo sobre os meus remendos


Lindo, lindo e suave o poema "Acolhimentos", de Luiza Cantanhêde, que: "O que outrora me expulsava/ Agora me aconchega// Ir embora é algo que demora/ A terminar// A porta entreaberta/ Mostra-me a prevalência/ De ficar.// Há uma manhã nascendo/ Sobre os meus remendos// Ouço a chuva mansa/ No telhado da casa".

Não dá para sentir quase que o ventinho dos versos fluflando sem som na cortina? É um poema, pelo menos a mim parece, de convalescença (e de convalescença precisamos todos); sopra aí aquela leveza morna que abençoa os cansaços quando já são ou já foram profundos, quando já estão portanto bastante aptos para a cura. O que outrora nos expulsava agora nos aconchega: a lassidão, a exaustão do mundo que embaraçavam a vontade e o apetite tornam-se, ao contrário, uma janela de interesse; a fraqueza atinge um ponto em que suspira forte por deixar de ser fraqueza, ou antes, suspira forte ao pressentir uns primeiros raiozinhos de que está deixando de sê-lo. É poderosa a prevalência de ficar – nascemos para viver essa intensidade que se revolta contra qualquer mal advindo; salvo adoentamento moral, salvo uma depressão ou similar que nos ponha vulneráveis ao vazio, a vida em nós não cansa, não desiste, é apetente por mais. Nunca falta o que nos falte. Existe sempre a ausência que nos arremessa.

E então, sobre os nossos remendos, amanhece; fatigados de tanta coisa séria, abrimos concessão ao riso, nos divertimos um bocadinho que seja, como quem consente em tomar um chá com biscoitos contra o jejum. Trata-se fundamentalmente dum amanhecer sem compromisso, assim de cara: é preciso que o seja, para não assustar a vontade delicada ou temperamental e não a deixar esfacelar-se, não permitir que ela se veja quase obrigada a ser volúvel. Não é hora de grandíssimos sóis, é hora de ouvir a chuva mansa, discretamente convidativa, maciamente acolhedora, perfumada daquela geosmina barrenta que nos atiça o olfato queiramos ou não; é hora de doçura e low-profilice, de melhorar baixinho e não de gritar de cima dos telhados, feito a amante escandalosa indesejada por Quintana. Para o cimo dos telhados já existe a chuva, ouçamos a chuva – lavando a manhã nova com ar de promessa; é elegante a chuva fina, para honra da fineza do adjetivo é uma lady, sofisticada quanto se pode ser nas maneiras e na psicologia.

Tão cara se mostra a prevalência de ficar, quando o cheiro da terra acorda as fomes da natureza que se achava vazia.

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