quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Como é difícil ver o natural

 

Adolfo Correia da Rocha – ou, literariamente, Miguel Torga – faria hoje 114 anos. Miguel em honra de Cervantes e Unamuno, Torga por ser o nome duma planta de montanha que finca fortemente as raízes sob a pedra (se bem que o Torga do escritor se tenha enraizado fortemente SOBRE o Rocha), o poeta era a definição do tipo tão discreto quanto bravio, tão inquieto e militante quanto avesso a publicidade e agitações. Fértil, prolífico, humanista, Torga choveu no mundo uma abundância de beleza, como nos versos de "Da realidade": "Que renda fez a tarde no jardim,/ Que há cedros que parecem de enxoval?/ Como é difícil ver o natural/ Quando a hora não quer!/ Ah! não digas que não ao que os teus olhos/ Colham nos dias de irrealidade./ Tudo então é verdade,/ Toda a rama parece/ Um tecido que tece/ A eternidade".

Não sei os olhos que me leem, mas os meus viraram fruta ensopada no açúcar desses dois primeiros versos, que descrevem tanto e tão plasticamente com tão pouco. Cedros que parecem de enxoval! – que imagem linda, linda para significar a delicadeza rendada das árvores, para ilustrá-las na plenitude de suas folhinhas bordadas. Desde os sempres da infância eu amei a sombra entrecortada dos ramos na parede, a dança entre galhos, sol e vento refletida na sala e mediada pelos vidros; era algo próprio da tarde, da meiuca tranquila e prometedora da tarde, daí minha comoção com as palavras do poeta que trouxeram à tona a impressão daqueles velhos momentos calmos, mornos duma brisa que anuncia frente fria no verão. Não me tinha dado conta inteiramente, antes do poema, do grande laço entre a ternura pelas folhagens como a do cedro, o encantamento pela renda, o alumbramento pelas telas impressionistas que pontilham vegetações e cores, pelas mandalas milmente detalhadas, pelas decorações de estilo marroquino, pelas miçangas, pelos sáris, pelas mantilhas, pelas borboletas, pelos caleidoscópios. Sei, mas é como se a todo minuto descobrisse: vou amar também nos sempres futuros, tanto quanto adorei nos passados, tudo que há de minuciosa abundância, de fartura suave, de transbordamentos meticulosos; vou estar permanentemente fadada aos mimozinhos do estilo francês (sem necessidade de versalhices, por favor), à paixão dos adjetivos, dos advérbios, das fofuras supérfluas ainda que controladas. Não serei jamais graciliana, jamais cabral-de-melo-neta, nunquinha muito substantiva – hei de botar tempero e tempero e tempero na sopa, e mais coisa e mais perfume até chegar ao gosto diagonal, oblíquo. Voilà, oblíqua: hei de estar fatalmente seguindo enviesada, não vendo nunca só o natural, vendo antes enxoval em tudo. Meus olhos não fazem colheita em dias de realidade.

Embora o paladar prefira salgado, meus olhos gostam de doce. Gostam de se alumbrar com o pequeno do pequeno, com o detalhe do detalhe, com o sentido conotativo dos cedros e das demais formas rendadas; são gulosos, esparramentos, sobremeseiros, não param nem por nada na denotação, não se conformam com o cinza e o areia – pedem verde, rosa, turquesa, anil, carmim e mais todos os tons e subtons e entretons de que nem Pantone dá conta. Meus infinitos parece que se tecem mesmo assim, nos poemas de tudo, seja o que for, e vai daí que a prosa do mundo fica eternamente um trabalho excessivo; se não me amarro muito decisivamente numa realidade bem mais pesada que o ar, evolo-me e ninguém me vê (em resposta, o lado prático anda sempre sobrealerta, com uma espécie de insulina moral na mão pronta para conter qualquer desbunde; ou seja: sou também, não raro, realista demais por efeito rebote). Que não me exijam com exagerada rapidez uma ação seca, decisiva, e que me abandonem sossegada nesse pragmatismo aéreo de borboleta; eu chego lá, eu chego lá, mesmo que pelo caminho demoroso em desvios.

A eternidade tem muitos fios.

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