quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Irmã coragem


Foram apenas três capítulos, mas já ficou extremamente claro o acerto da escalação de Gabriela Medvedovski (uma das Five em Malhação: viva a diferença e na série spin-offada da novelinha) para o papel de heroína topetuda em Nos tempos do imperador. Sua beleza suave e esperta, espontaneamente adolescente e rijamente madura, com riso no canto do olho fácil de se tornar severidade, doçura, tristeza, revolta – é de temperatura perfeita para a "imperfeição" que a atriz mesma diz buscar na mocinha, e é um alívio dramatúrgico para gerações que agora chegam e merecem: menos rostos e corpos inacessíveis, porcelânicos; menos formas surreais, vaporosas, inatingíveis. A bela Gabriela poderia ser nossa vizinha de porta, a garota no elevador, a guria do trabalho em grupo, sorrindo ali a alguns metros sua morenice muito brasileira, muito nossa. Menos "nossa!".

Concordo que Pilar, a personagem de Gabi, é um ser de altíssima improbabilidade histórica; filha dum coronel (no interior da Bahia de 1856), e ademais criada em convento, a moça sonha ser a primeira médica do Brasil, possui instrumentos próprios de medicina, sabe tudíssimo que é possível saber na área enquanto não se faz um curso superior – chegando a extrair sozinha uma bala do peito de Jorge, seu interesse romântico, e a ser a única postulante a gabaritar a sabatina de admissão na faculdade. De que maneira a jovem recém-saída da educação conventual teve acesso a instrumentos e livros bastantes para uma formação tão quase miraculosa, desconheço; e os fatos do lado de cá da tela também não dão lá o maiorrapoio a essa biografia fictícia, uma vez que Maria Augusta Generoso Estrella e Rita Lobato Velho Lopes, ambas apresentadas por fontes distintas como a primeira médica brasileira, tinham respectivamente 4 e 10 anos no momento atual da novela. Maria Augusta, por exemplo, só começou os estudos médicos – em Nova York, já que nossas universidades não aceitavam candidatas a doutoras – duas décadas após o ano em que Pilar se encontra, e formou-se apenas em 1879. Mas OK; sendo Pilar uma mocinha tão inspiradora até para os padrões século-vinte-unos, a gente sublima a implicância histórica em nome, inclusive, de tantas mulheres oitocentistas das quais jamais viremos a saber, tão cobertas de talento e sonhos quanto a heroína, e no entanto sufocadas, subestimadas, violentadas, trancafiadas, desperdiçadas, corroídas por um sistema patriarcal e nojento cujos alicerces herdamos, cujas garras ainda seguem destroçantes enquanto não as arrancamos de todo.

Sarcástica, genial, bem-humorada, afrontosa, irrestrita e inegociavelmente contrária à ideia do casamento arranjado pelo pai (aliás o "noivo" Tonico, vilão vivido por Alexandre Nero, é outro espetáculo de personagem – horrendamente repulsivo, sem chance de conquistar simpatias, e ainda assim engraçado para o espectador), isenta do mais leve traço de autodepreciação ou submissão, espirituosa, resoluta, indômita, Pilar talvez não seja provável em sua época, mas é adequada para todas; dificilmente poderíamos contar com uma figura feminina mais frutífera para o girl power na teledramaturgia atual. Que seu exemplo de fundamental rebeldia grite muito mais alto no enredo do que a romantização despropositada de um imperador (certo, um imperador intelectual que adoraria trocar a sala do trono pela sala de aula, mas STILL um imperador); que seus movimentos de emancipação inexorável, libertos da tentação de olhar para trás, nos girem a cabeça para longe dessa mesma tentação – ora, tudo de que não necessitávamos era um elogio da monarquia e uma crítica aos trâmites do Congresso numa hora destas. De nosso 1856, fique em nós a Pilar que não houve, para que haja abundantemente agora em todos os lugares.

E que caiam de vez os outros velhos pilares.

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